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FERNANDO GABEIRA
O Carandiru como atração turística
E sse complexo do Carandiru não me é estranho. Sofri
muito ao entrar ali depois do
massacre. Um tipo de sofrimento
parecido com o de Vigário Geral,
este com mais impacto porque os
corpos ainda estavam no chão.
Por causa da indignação com o
Carandiru, acabei na Justiça processado pelo então governador
Fleury Filho, com quem mantenho hoje relações cordiais, superados os problemas da época.
Ao ver o Carandiru, onde recentemente entrei com Suplicy após o
motim do PCC, passar por um
processo de desativação, pensei
que talvez fosse interessante abri-lo ao grande público. Estudantes
com seus professores, universitários de direito e de arquitetura,
todos deveriam ter acesso ao prédio e estudar suas minúcias.
Será muito mais fácil que o trabalho de arqueólogos que pesquisam ruínas semidestruídas, enterradas por séculos.
Minha suspeita é a de que, ao
nos debruçarmos sobre o estudo
da organização especial, dos regulamentos, das inscrições deixadas nas celas, talvez possamos
compreender melhor esse mundo
das cadeias, um barril de pólvora
nacional.
Depois dos grandes motins paulistas e, sobretudo, da tomada de
Bangu 1 pelo Comando Vermelho, alguns jornalistas têm divulgado a existência de superpenitenciárias norte-americanas cujas condições de segurança são
perfeitas. Algemas, luzes que não
se apagam, câmeras devassando
as celas, enfim, um dispositivo
técnico-científico que impede o
preso de se rebelar ou de se organizar. Numa dessas crônicas com
a apologia das supermax, falava-se do espanto de um especialista
norte-americano com o fato de
presos perigosos no Brasil terem
direito à visita íntima.
Aos olhos dos nossos irmãos do
norte e de alguns brasileiros , talvez a maioria, isso é um luxo dispensável, e os presos devem ser colocados num regime severo, do tipo do imposto aos membros do
Taleban e da Al Qaeda na base de
Guantánamo.
No entanto quem quiser transplantar a visão para o Brasil tem
de tomar alguns cuidados porque
os agentes penitenciários no Rio
ganham um salário de R$ 151 e,
com gratificações, chegam a receber R$ 400, trabalhando 48 horas
por semana. Por mais perfeita
que seja a técnica, tratar dessa
maneira os recursos humanos
sempre resultará em fracasso. A
propósito: Bangu 1 tem detetores
de metal, só que não funcionavam bem há muito tempo.
A questão fundamental é outra.
Compensa seguir a visão de mundo americana? A idéia de visita
íntima implica não só a possibilidade de o preso ter uma vida
emocional e sexual, mas também
a aposta de que a satisfação dessas necessidades possa ter um
efeito pacificador em sua vida.
O mesmo vale para o trabalho,
para o exercício de atividades artísticas e até, em casos mais radicais, para a mudança da alimentação dos presos.
Muitos podem dizer que os presos são feras, que não merecem a
condição humana e todas as acusações que ouvimos com frequência na rua. Continuo achando,
neste momento em que o Carandiru é desativado, que o Brasil poderia experimentar um caminho
diferente do dos Estados Unidos.
O que deveríamos aproveitar são
as condições materiais adequadas tanto para os presos como para seus carcereiros. Conquistado
esse nível material um pouco
mais digno, o investimento deveria ser na pacificação do sistema.
Há sociedades que se definem
pela guerra e produzem líderes
políticos como George W. Bush.
Outras, apesar de suas contradições internas, se definem como
construtoras da paz no planeta.
Era preciso construir cadeias pensando no papel que queremos desempenhar no mundo. Elas não
podem desmentir a imagem cordial que gostaríamos de projetar.
Essa explosão do sistema penitenciário vai nos forçar a um debate e a escolhas decisivas para o
futuro. Por isso o Carandiru, enquanto não é usado para outras
finalidades, talvez possa ser um
excelente material de estudo.
Quem sabe encontramos nos seus
corredores sombrios a inspiração
para o tratamento do tema.
Compreendo as razões dos que
propõem um endurecimento do
tipo norte-americano. No entanto
acho que o jogo democrático e o
entrechoque de idéias vão decidir
quem tem razão. Nunca se experimentou, no Brasil, a combinação de condições dignas com políticas de pacificação. Apostar no
isolamento total do preso, usando
inúmeros artifícios científicos, é
apenas saltar da barbárie do sistema atual para a barbárie tecnificada. Um salto sem qualidade.
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