São Paulo, segunda-feira, 30 de setembro de 2002

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FERNANDO GABEIRA

O Carandiru como atração turística

E sse complexo do Carandiru não me é estranho. Sofri muito ao entrar ali depois do massacre. Um tipo de sofrimento parecido com o de Vigário Geral, este com mais impacto porque os corpos ainda estavam no chão.
Por causa da indignação com o Carandiru, acabei na Justiça processado pelo então governador Fleury Filho, com quem mantenho hoje relações cordiais, superados os problemas da época.
Ao ver o Carandiru, onde recentemente entrei com Suplicy após o motim do PCC, passar por um processo de desativação, pensei que talvez fosse interessante abri-lo ao grande público. Estudantes com seus professores, universitários de direito e de arquitetura, todos deveriam ter acesso ao prédio e estudar suas minúcias.
Será muito mais fácil que o trabalho de arqueólogos que pesquisam ruínas semidestruídas, enterradas por séculos.
Minha suspeita é a de que, ao nos debruçarmos sobre o estudo da organização especial, dos regulamentos, das inscrições deixadas nas celas, talvez possamos compreender melhor esse mundo das cadeias, um barril de pólvora nacional.
Depois dos grandes motins paulistas e, sobretudo, da tomada de Bangu 1 pelo Comando Vermelho, alguns jornalistas têm divulgado a existência de superpenitenciárias norte-americanas cujas condições de segurança são perfeitas. Algemas, luzes que não se apagam, câmeras devassando as celas, enfim, um dispositivo técnico-científico que impede o preso de se rebelar ou de se organizar. Numa dessas crônicas com a apologia das supermax, falava-se do espanto de um especialista norte-americano com o fato de presos perigosos no Brasil terem direito à visita íntima.
Aos olhos dos nossos irmãos do norte e de alguns brasileiros , talvez a maioria, isso é um luxo dispensável, e os presos devem ser colocados num regime severo, do tipo do imposto aos membros do Taleban e da Al Qaeda na base de Guantánamo.
No entanto quem quiser transplantar a visão para o Brasil tem de tomar alguns cuidados porque os agentes penitenciários no Rio ganham um salário de R$ 151 e, com gratificações, chegam a receber R$ 400, trabalhando 48 horas por semana. Por mais perfeita que seja a técnica, tratar dessa maneira os recursos humanos sempre resultará em fracasso. A propósito: Bangu 1 tem detetores de metal, só que não funcionavam bem há muito tempo.
A questão fundamental é outra. Compensa seguir a visão de mundo americana? A idéia de visita íntima implica não só a possibilidade de o preso ter uma vida emocional e sexual, mas também a aposta de que a satisfação dessas necessidades possa ter um efeito pacificador em sua vida.
O mesmo vale para o trabalho, para o exercício de atividades artísticas e até, em casos mais radicais, para a mudança da alimentação dos presos.
Muitos podem dizer que os presos são feras, que não merecem a condição humana e todas as acusações que ouvimos com frequência na rua. Continuo achando, neste momento em que o Carandiru é desativado, que o Brasil poderia experimentar um caminho diferente do dos Estados Unidos. O que deveríamos aproveitar são as condições materiais adequadas tanto para os presos como para seus carcereiros. Conquistado esse nível material um pouco mais digno, o investimento deveria ser na pacificação do sistema.
Há sociedades que se definem pela guerra e produzem líderes políticos como George W. Bush. Outras, apesar de suas contradições internas, se definem como construtoras da paz no planeta. Era preciso construir cadeias pensando no papel que queremos desempenhar no mundo. Elas não podem desmentir a imagem cordial que gostaríamos de projetar.
Essa explosão do sistema penitenciário vai nos forçar a um debate e a escolhas decisivas para o futuro. Por isso o Carandiru, enquanto não é usado para outras finalidades, talvez possa ser um excelente material de estudo. Quem sabe encontramos nos seus corredores sombrios a inspiração para o tratamento do tema.
Compreendo as razões dos que propõem um endurecimento do tipo norte-americano. No entanto acho que o jogo democrático e o entrechoque de idéias vão decidir quem tem razão. Nunca se experimentou, no Brasil, a combinação de condições dignas com políticas de pacificação. Apostar no isolamento total do preso, usando inúmeros artifícios científicos, é apenas saltar da barbárie do sistema atual para a barbárie tecnificada. Um salto sem qualidade.


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