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São Paulo, segunda-feira, 31 de março de 2003

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HOLANDA EM TELA

Terra de Rembrandt e Van Gogh tem cortina aberta entre pintura e vida cotidiana

Arte imita vida, e vice-versa, no país

CASSIANO ELEK MACHADO
ENVIADO ESPECIAL À HOLANDA

Uma velha propaganda da companhia aérea KLM, da Holanda, pavoneava o seguinte: "Muitas pessoas só conseguem olhar grandes obras de arte. Os holandeses podem viver em uma".
Tirado da frase todo o seu "nariz-empinismo", não é difícil entrar em acordo com ela.
Eu e você, leitor, provavelmente nunca viveremos dentro dessa "pintura", mas visitar o país de Rembrandt, Van Gogh e companhia talvez seja mesmo a melhor forma de vivenciar arte.
Fatia de terra menor que a Paraíba, a Holanda fez pela pintura algo parecido ao que a Irlanda operou nas letras. Se da pequenez irlandesa saíram quatro Nobel de literatura (Samuel Beckett, W.B. Yeats, George Bernard Shaw e Seamus Heaney -sem contar o esquecido James Joyce), dos irrigados 41.526 km2 holandeses brotaram número não menor de pilares da arte ocidental.
Mas não é só até aí que vai o slogan da KLM. Ainda sobre a terra onde nasceram dezenas de artistas ímpares -a lista começa no século 15, com Hieronymus Bosch, e segue pelo menos até 1944, quando morre Piet Mondrian-, a Holanda é, para começar, o melhor lugar do mundo para ver arte holandesa. Afinal o assunto aqui é turismo.
A terra da rainha Beatrix, que acaba de fazer uma de suas raras visitas internacionais justamente ao Brasil, tem museus a torto e a direito, alguns dos melhores de que se tem notícia.
Apenas em Amsterdã, ou melhor, em um pequeno bairro da capital, o viajante tem pela frente o gigante Rijksmuseum -e sua imbatível coleção de Rembrandt-, o moderno Stedelijk -e seus Mondrians- e o museu Van Gogh, que assoprou ontem as velas dos 150 anos de nascimento de seu homenageado (veja mapa nesta pág.).
Não longe dali, a cidade da rainha, ela mesma artista amadora, continua com pompa a sensacional pinacoteca holandesa. Em Haia, que acaba de abrir um peculiar museu para o peculiar Escher (1898-1972), fica, por exemplo, o "quadro mais bonito do mundo" (explica-se, à pág. F6) e outra amostra inesquecível da arte de Johannes Vermeer (1632-75).
"Garota do Brinco de Pérola", na parede do museu Mauritshuis, ajuda a entender o crítico e pintor local Jan Veth, quando disse que a superfície das pinturas de Vermeer parece ser feita de "pérolas maceradas e fundidas em conjunto", tamanha a delicadeza e o domínio da luz do artista.
Mas é com outra obra desse mestre da cidade de Delft que é possível seguir adiante nas idéias do anúncio da empresa aérea holandesa. Se a arte imita a vida, desconte-se o clichê, a vida também imita a arte nos Países Baixos.
Quem caminha por qualquer um dos 165 canais de Amsterdã, canais só menos famosos do que os venezianos, pode topar com cenas dignas de "A Leiteira", de Vermeer. Obra-prima do acervo do Rijksmuseum, o quadro que mostra uma mulher derramando leite em um pote é exemplar de um estilo artístico bem holandês.
A chamada pintura de gênero, que começa no século 17, é basicamente a que retrata temas domésticos -até então, cenas bíblicas dominavam a arte mundial. E em poucos lugares do globo se pode espiar das ruas tanto dos aconchegos do lar quanto na Holanda.
Indagado pela Folha, o curador do museu Mauritshuis, Quentin Buvelot, deu uma parte da explicação: "Existe uma palavra holandesa sem muita tradução, "gezellig", que seria algo como "aconchego" e "conforto". Graças ao frio e ao clima úmido, temos de passar boa parte da nossa vida em casa, motivo pelo qual queremos que ela seja bem acolhedora".
Até aí, tudo bem, mas por que elas ficam tão à vista dos olhares dos passantes?
O livro "The UnDutchables", de Colin White & Laurie Boucke, tem uma boa teoria. Depois de afirmarem que nada em uma casa importa mais ao holandês do que as janelas, e que todas elas ficam com as cortinas abertas, os autores, americanos, afirmam: "Pode-se atribuir isso a uma antiga tradição calvinista. Com as cortinas abertas, se mostrava que nada de pecaminoso acontecia lá dentro".
Este caderno de Turismo não pretende levar o leitor ao interior dos lares holandeses nem verificar quão pecaminosos eles são. Mas, nas próximas páginas, abrimos cortinas para que se espiem aspectos da vívida arte local.
Os 16 milhões de moradores da Holanda podem ser os únicos a viverem dentro dela, mas só quem vem de fora pode ter o gosto de vê-la como na primeira vez.


Cassiano Elek Machado viajou a convite do Consulado Geral dos Países Baixos em São Paulo.

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