São Paulo, domingo, 01 de setembro de 2002

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CRÍTICA

A cidade imaginária

EUGÊNIO BUCCI

NÃO, A cidade imaginária não é uma cidade que não existe. Não é aquela que alguém diz que traz na imaginação, a cidade ideal, a cidade dos sonhos, a cidade projetada. Nada disso, por favor. A expressão cidade imaginária, ao menos aqui neste artigo, vem designar a metrópole recoberta de elementos do imaginário: cores, formas, figuras, automóveis, multidões se precipitando nas faixas de pedestres na hora do rush, outdoors de imagens fixas e, agora, outdoors que são televisores mastodônticos escancarados para a avenida que escorre. A televisão gigante brota da parede cega do arranha-céu e põe suas personagens luminosas a se mexer. As paredes urbanas adquirem luz própria, movimento próprio, vida própria. Na avenida Paulista, esses monitores do tamanho de outdoors anunciam mensagens exóticas. Anunciam candidatos a deputado. Na avenida 23 de Maio também. O candidato sorri para o congestionamento. O candidato ainda balança a cabeça. O horário eleitoral irrompe feito pústula pelas brechas do concreto armado. Está preso ali. E, não obstante, ele se move.
O motorista avança para o cruzamento, o rádio ligado numa emissora que repete "o motorista não encontra dificuldade", e se distrai vendo o candidato com ar de moça na janela. O motorista bate no carro da frente. O candidato tem um olhar de pura confiança. O carro da frente finge que não é com ele. A batida é de leve. Nenhum automóvel anda, embora a voz no rádio garanta que "o trânsito flui bem". O trânsito, aliás, trava. Só o candidato na empena do prédio é capaz de caminhar com resoluta liberdade. A televisão e suas figuras metafísicas cercam a cidade por todos os lados. Cercam a cidade porque cercam o olhar, cada lance fugidio do olhar. Cada objeto é um signo à caça de um par de olhos. Os restaurantes dispostos nas calçadas são os outdoors de si mesmos. Os viadutos fazem publicidade do prefeito. Os edifícios e suas varandas empilhadas, e seus perfis espelhados, e seus heliportos empinados. Os edifícios são anúncios do mercado imobiliário. O traçado das ruas, a moça alta na esquina que veste aquela grife. A imagem publicitária é total. Tapa cada fragmento de horizonte. E se move.
Nas antigas animações de Walt Disney, era comum aquela tirada de metalinguagem pela qual surgia na tela a mão do desenhista segurando um pincel e, desse pincel, respingavam manchas de tinta na página em branco. Na sequência seguinte, as manchas se tornavam independentes e saíam saltitando pela página. Eram bonequinhos, personagens de cartoon ou simplesmente formas abstratas. Que ganhavam vida. Pois é mais ou menos isso o que se passa com a cidade. Camadas sobre camadas de tinta, de formatos, de pistas recapeadas, de placas com nomes de rua, de lápides eternas e sempre atualizadas nas vielas dos cemitérios, de imensos televisores nos cruzamentos, como aquele da Rebouças com a Brasil. A cidade é uma sucessão de imagens que se depositam umas sobre as outras, como colônias de fungo. O imaginário dita o espaço. E se move.
Em "Blade Runner", imensas telas planas passeavam pelo céu da noite, como se penduradas num dirigível, fazendo da televisão uma entidade tão onipresente quanto a Lua. Mas "Blade Runner" é de 1982 e, à luz fria dos nossos tempos, parece uma ficção anacrônica. A televisão onipresente é hoje um dado corriqueiro. Ela está nas cozinhas, nos banheiros, nos táxis, nas salas dos ministros e nas guaritas dos guardas-noturnos instaladas nas calçadas. Está nas farmácias, nos elevadores, nas margens das avenidas, nas moradias dos sem-teto improvisadas sob os pontilhões. "Eppur si muove".
Mesmo assim, o sujeito contemporâneo olha para a frente e pensa ver a realidade. Que coisa. Que coisa imaginária. Ele só vê a cidade. Imaginária.



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