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São Paulo, domingo, 02 de fevereiro de 2003

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Esperança convicta

Patrizia Giancotti/TV Globo
Luiz Fernando Carvalho dirige Walmor Chagas em cena gravada na Itália


Patrizia Giancotti/TV Globo
Carvalho com figurantes italianos ao fundo


MARCELO MIGLIACCIO
EDITOR DO TV FOLHA

A CLAMADO como um dos diretores mais talentosos da teledramaturgia brasileira -e do cinema, com seu "Lavoura Arcaica" (2001)-, Luiz Fernando Carvalho, 42, vive agora a experiência da tumultuada troca de autor em "Esperança", cujos índices de audiência nunca chegaram ao patamar projetado pela Rede Globo -nem mesmo após a substituição de Benedito Ruy Barbosa por Walcyr Carrasco. Entretanto, em sua primeira entrevista depois da crise na novela, Carvalho diz à Folha, por e-mail, que não abandona suas convicções.

Com "Esperança" no final, que balanço você faz da novela? O que ela lhe trouxe em experiência televisiva?
Nada foi tão forte quanto a confirmação de que é preciso, na televisão de hoje, trabalhar na direção contrária à dos clichês. O clichê aponta para uma falta de confiança no homem, já que ele pressupõe que é impossível impor-lhe opiniões. Ao contrário, é preciso que as televisões gerem mais conteúdo e mais conhecimento. É preciso ensinar as pessoas a pensar, e não o quê elas devem pensar. Isso é algo muito diferente do que se faz habitualmente.
Adquirir mais conhecimento é um empreendimento tão belo quanto desenvolver o mundo da imaginação. "Esperança" foi um trabalho que nos desafiou em vários sentidos. Sempre fui bastante crítico quanto à escolha do tema para a novela, já que a imigração italiana me soava saturada. Por outro lado, o tema das correntes migratórias sempre chamou minha atenção. Então, talvez o maior desafio -e o maior estímulo- tenha sido procurar uma motivação para que aquilo tudo que me soava como clichê voltasse a simplesmente existir.
Durante a troca de autor, você manteve a discrição. Gostaria de ouvir algumas reflexões de quem está no olho do furacão.
Todos sabemos o quanto é desgastante o trabalho de um autor de novelas, mas sabemos também o quanto estar preparado é tudo. Tenho o maior respeito e admiração pela obra do Benedito Ruy Barbosa, mas eu, que já dirigi cinco outras novelas suas de sucesso, pude sentir, desde o início, que ele não estava pronto.

Esse é um ponto importante, que determina e reflete uma carência real por novos autores, capazes de reoxigenar a dramaturgia e, ao mesmo tempo, liberar fôlego aos autores consagrados.
Como você, um diretor bastante autoral, encarou as mudanças na trama?
Como um exercício. Me preparei para receber a entrada do Walcyr como quando um ator de teatro substitui seu colega em uma nova temporada. Foi isso o que aconteceu, estreamos uma nova novela em meio à outra. Reuni o elenco e a equipe, e procuramos nos colocar o mais generosamente possível.
No primeiro mês após a troca de autor, "Esperança" apresenta, na Grande SP, uma audiência dois pontos mais baixa que a média do último mês com Benedito. Parte do público teria deixado de assistir descontente com mudanças na história?
O decréscimo de dois pontos não foi representativo o suficiente para ser entendido como uma rejeição. Não quero transformar essa questão numa rinha de galos, mas, sem dúvida, o público reencontra agora um vínculo perdido com a novela: picos de 48%, média de 43% e "share" de 61%. São números que refletem a capacidade de se reconstruir da própria novela. Seria ingenuidade dizer que estamos a reboque de uma mudança de programação. A mudança se verificou e continuará se verificando no corpo da narrativa. O mérito, se é que podemos chamar assim, é unicamente da resistência e da busca por melhores resultados deste grupo de profissionais.
Como é a sua relação com o Walcyr Carrasco? Você opinou sobre as mudanças?
Tudo a que assistimos agora é fruto de uma convergência de idéias entre nós. Apesar de nos conhecermos apenas através desse trabalho, nossa comunicação foi excelente. É um autor estimulante e de traço pessoal muito forte. Tivemos várias reuniões, mas seu conhecimento da novela já vinha de muito antes: há meses o Mário Lúcio Vaz já havia pedido para que ele acompanhasse os capítulos.
Como fica a motivação da equipe depois de uma troca de autor? São profissionais, mas também seres humanos que sentem as pressões e as críticas...
Formamos um grupo maravilhoso. E não podemos negar que a substituição dos autores permitiu desenvolvimentos para algumas tramas. Há que se respeitar uma certa liberdade para quem chega, senão a criação deixa de existir e então tudo perde o sentido. Mas, em toda novela de mais de 200 capítulos, a roda da história gira até mesmo sem substituição alguma. Portanto, o esforço de todos nós -incluo aí o próprio Walcyr- foi o de compreender esse movimento, cuidando para que a qualidade não sofresse em demasia. E nesse esforço, a participação do elenco foi fundamental. Não teríamos conseguido reestruturar a história, aumentar a produtividade e -além de tudo isso- recuperar nossos melhores índices. Não seria exagero afirmar que, naqueles dias difíceis, os atores se transformaram em verdadeiros co-autores.
Ainda mantém contato com o Benedito?
Confesso que foi muito delicado continuar mantendo um contato diário com o Benedito. A cada telefonema, sentia sua dor encarnada no tom da voz. Aquilo me desequilibrava, e eu precisava me concentrar nos novos capítulos que chegavam. Na última vez em que nos falamos, ainda me lembro, pedi que ele procurasse se desligar da novela emocionalmente, procurasse cuidar da saúde e fosse descansar, que, em breve, ele estaria pronto para mais um de seus bons trabalhos.
Outros telefonemas vieram, mas tentei evitá-los ao máximo. Sei que nossa cumplicidade é, e sempre será, muito forte, eu o considero muito e sei que ele a mim. Tudo o que quero é que ele de maneira alguma sinta que estou decepcionado com ele e vice-versa. Jamais o consideraria um derrotado. Muito ao contrário, trata-se de um guerreiro que lutou até o limite de suas forças.
A TV, talvez a mais imediatista indústria do entretenimento, surpreendeu você?
Neste mundo de hoje, da globalização, da corrida febril atrás das descobertas, o homem foi esquecido e, com ele, todas as suas experiências espirituais, morais e sociais. Em primeiro lugar, temos que perguntar que tipo de homem é necessário ao mundo moderno. Em segundo, que tipo de televisão será necessária a este homem. Uma televisão que necessitará de consumidores em massa ou de indivíduos conscientes? Qual o destino reservado à televisão e aos homens? Que a televisão seja apenas diversão, me parece bastante contestável. Precisamos de diversão, mas também precisamos nos orientar e entender o mundo.
No horário nobre da TV aberta ainda há espaço para a qualidade, a narrativa trabalhada, as nuances de iluminação e de interpretação? Existe uma corrente que acha que isso não é mais viável pela competição acirrada entre os canais e a característica da massa telespectadora...
Dante já dizia: "O que um homem ignora, o outro sabe. O que não é conhecido em um país o é em outro. Todo o conhecimento de que um homem é capaz seria simultaneamente conhecido por todos, se todos fôssemos livres". Claro, tudo isso é mais fácil de ser dito do que vivido. De minha parte, continuo lutando por uma televisão que possa unir, a um só golpe, o popular e a experiência artística. Por outro lado, se você constantemente navegar contra a corrente você se torna imediatamente um elemento perturbador. Mas, nesta altura, você só tem um problema: para quem deve trabalhar, para si ou para a humanidade? É um problema que pode nos afetar ou não. Se ele nos afeta, e mesmo se o preço for muito alto, sempre o resolveremos da única maneira possível.


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