São Paulo, domingo, 02 de abril de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CRÍTICA

A nova (velha) Globo

Fernando de Barros e Silva

A GLOBO sempre fez e sustentou governantes. Agora, mostra-se muita empenhada em derrubar um. Nessa troca de sinais, há muito o que comentar. Será que a emissora não é mais aquela? Abusando do paralelismo com a obra intelectual de FHC (a teoria da dependência), parece que também no caso da Globo "o mundo mudou" - estamos vivendo a gestação de uma "novíssima dependência". Ideologices à parte, são quatro os pontos que interessam: 1. A performance da Globo no Pittagate; 2. O caso Globo/ACM; 3. A legitimação, por vias tortas, do estilo "Linha Direta" no jornalismo global; 4. A atitude subalterna da concorrência.
Mas, como Jack, vamos por partes.
Desde o início, quando ninguém sabia da existência de Nicéa Pitta, foi a Globo, precisamente o "SP-TV 1ª edição", comandado por Chico Pinheiro, que decidiu lançar luz sobre a lama paulistana. Enquanto o "Jornal Nacional" dava sinais claros de despolitização e flertava com um modelo de noticiário pautado pelos "faits divers" (algo como "amenidades", em francês) ou por denúncias de mazelas sociais desde que desconectadas da "grande política" brasiliense, o "SP-TV" apostou num formato alternativo. Chico Pinheiro dedicou sua energia a denunciar a máfia. E o fez, desde cedo, de maneira muito agressiva e desimpedida. Interpelava entrevistados no ar, não os deixava falar de modo protocolar, atuava muitas vezes além do limite da conveniência para, em seguida, fazer comentários improvisados e indignados, falando diretamente com o espectador.
A fórmula deu certo. Não tenho dificuldades em caracterizá-la como uma espécie de "telepopulismo" moralizante e levemente esquerdista, com toda a ambiguidade que ela embute. O fato é que o telejornal tomou a vanguarda disso que hoje chamamos de Pittagate, ajudado pela visibilidade da bandalheira -praticada a céu aberto, por assim dizer.
Foi isso, aliado à força de atração "natural" da Globo, que fez com que Nicéa procurasse Chico Pinheiro para fazer suas denúncias quando, enfim, seus interesses foram contrariados. Não houve "armação" nenhuma de tucanos por trás das denúncias, como fazem supor vários atingidos. No sábado de Carnaval, depois de ter conversado -sem gravar entrevista- na sexta-feira com Pinheiro, no hall de seu apartamento, Nicéa telefonou ao jornalista. Havia acabado de brigar com Pitta no flat do prefeito. Exaltada, disse: "Eu quero que você ponha minhas denúncias no ar agora. Eu vou para o Sambódromo e você me coloca falando da pista, com aquele negócio dos microfones voando". A ex-primeira-dama referia-se à vinheta de apresentação do "Plantão do "JN"". Essa história, inédita, é um detalhe que ilustra bem o açodamento com que agiu Nicéa na semana em que foi gestado o "Globo Repórter" fatídico.
A Globo logo percebeu o alcance de seu gol jornalístico. O que fez a seguir? Transformou Nicéa numa das estrelas da casa e entrou em campanha novelesca. Os defeitos de origem do "SP-TV" contaminaram a rede. Defeitos, sim, porque, embora a disposição crítica e a politização fossem positivas, ainda que populistas, elas rapidamente se misturaram ao atropelo de regras elementares do bom jornalismo. Procedimentos comezinhos como "ouvir o outro lado" vêm sendo, neste caso, reiteradamente ignorados pelo Jardim Botânico. Parece detalhe, não é. Mais grave ainda, denúncias anônimas contra Pitta são avalizadas no ar pelo "JN". Enfim, para manter o caso na berlinda, foi deflagrado um vale-tudo jornalístico cuja motivação é a legitimação da Globo como nova emissora independente.
(Note-se, de passagem, a atual propaganda da Globo em torno das comemorações dos 50 anos da TV: numa das peças, carregada de tons patrióticos, surgem imagens de rua das Diretas-Já, que a Globo à época boicotou e escondeu do público. A emissora tenta reescrever a história do ponto de vista que hoje lhe é mais conveniente.)
O fato é que Celso Pitta é hoje um cadáver político, e a Globo não vai abrir mão de exibir o seu troféu em praça pública -ou em horário nobre. Há alguma relação entre o linchamento do prefeito (não entro no mérito das denúncias; pretendo apenas politizar a política, inclusive a da TV) e o estilo "Linha Direta", que sai vitorioso dessa história. Quando uma emissora faz as vezes da Justiça, é preciso refletir melhor sobre a qualidade da democracia que vige no país. Não é o caso, evidentemente, de enfileirar com a concorrência, SBT e Bandeirantes à frente, que carrega Pitta no colo em troca de audiência ou coisas piores.
O programa de Gugu Liberato aos domingos é nocivo à vida civilizada. Amaury Jr. e cia. não merecem ter seus nomes citados -a simples menção já os dignifica. Esse é o lado caricato da nossa miséria democrática. Quanto ao outro, mais fundamental, digo que não basta colocar o negro no pelourinho nem desembarcar de ACM depois de agradecer pelos serviços prestados -a Globo, aliás, é causa e efeito da curva descendente do senador. A lógica do espetáculo que vai vingando no noticiário alinha com uma nova forma de barbárie. Democracia é outra coisa. O povo, mais uma vez, se diverte com o banquete que a elite lhe preparou para a festa dos 500 anos.


E-mail: fbsi@uol.com.br



Texto Anterior: Astrologia - Barbara Abramo: Um domingo inspirado
Próximo Texto: Filmes de hoje
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.