|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CRÍTICA
A nova (velha) Globo
Fernando de Barros e Silva
A GLOBO sempre fez e sustentou governantes.
Agora, mostra-se muita empenhada em derrubar um. Nessa troca de sinais, há muito o que comentar. Será que a emissora não é mais aquela?
Abusando do paralelismo com a obra intelectual de FHC
(a teoria da dependência), parece que também no caso da
Globo "o mundo mudou" - estamos vivendo a gestação
de uma "novíssima dependência". Ideologices à parte,
são quatro os pontos que interessam: 1. A performance da
Globo no Pittagate; 2. O caso Globo/ACM; 3. A legitimação, por vias tortas, do estilo "Linha Direta" no jornalismo global; 4. A atitude
subalterna da concorrência.
Mas, como Jack, vamos por partes.
Desde o início, quando ninguém sabia
da existência de Nicéa Pitta, foi a Globo,
precisamente o "SP-TV 1ª edição", comandado por Chico Pinheiro, que decidiu lançar luz sobre a lama paulistana.
Enquanto o "Jornal Nacional" dava sinais claros de despolitização e flertava
com um modelo de noticiário pautado
pelos "faits divers" (algo como "amenidades", em francês) ou por denúncias de
mazelas sociais desde que desconectadas
da "grande política" brasiliense, o "SP-TV" apostou num formato alternativo.
Chico Pinheiro dedicou sua energia a denunciar a máfia. E o fez, desde cedo, de
maneira muito agressiva e desimpedida.
Interpelava entrevistados no ar, não os
deixava falar de modo protocolar, atuava
muitas vezes além do limite da conveniência para, em seguida, fazer comentários improvisados e indignados, falando diretamente com o espectador.
A fórmula deu certo. Não tenho dificuldades em caracterizá-la como uma espécie de "telepopulismo" moralizante e levemente esquerdista, com toda a ambiguidade
que ela embute. O fato é que o telejornal tomou a vanguarda disso que hoje chamamos de Pittagate, ajudado
pela visibilidade da bandalheira -praticada a céu aberto,
por assim dizer.
Foi isso, aliado à força de atração "natural" da Globo,
que fez com que Nicéa procurasse Chico Pinheiro para fazer suas denúncias quando, enfim, seus interesses foram
contrariados. Não houve "armação" nenhuma de tucanos por trás das denúncias, como fazem supor vários
atingidos. No sábado de Carnaval, depois de ter conversado -sem gravar entrevista- na sexta-feira com Pinheiro, no hall de seu apartamento, Nicéa telefonou ao jornalista. Havia acabado de brigar com Pitta no flat do prefeito. Exaltada, disse: "Eu quero que você ponha minhas denúncias no ar agora. Eu vou para o Sambódromo e você
me coloca falando da pista, com aquele negócio dos microfones voando". A ex-primeira-dama referia-se à vinheta de apresentação do "Plantão do "JN"". Essa história,
inédita, é um detalhe que ilustra bem o açodamento com
que agiu Nicéa na semana em que foi gestado o "Globo
Repórter" fatídico.
A Globo logo percebeu o alcance de seu gol jornalístico.
O que fez a seguir? Transformou Nicéa numa das estrelas
da casa e entrou em campanha novelesca. Os defeitos de
origem do "SP-TV" contaminaram a rede. Defeitos, sim,
porque, embora a disposição crítica e a politização fossem positivas, ainda que populistas, elas rapidamente se
misturaram ao atropelo de regras elementares do bom
jornalismo. Procedimentos comezinhos como "ouvir o outro lado" vêm
sendo, neste caso, reiteradamente ignorados pelo Jardim Botânico. Parece
detalhe, não é. Mais grave ainda, denúncias anônimas contra Pitta são
avalizadas no ar pelo "JN". Enfim, para manter o caso na berlinda, foi deflagrado um vale-tudo jornalístico cuja
motivação é a legitimação da Globo
como nova emissora independente.
(Note-se, de passagem, a atual propaganda da Globo em torno das comemorações dos 50 anos da TV: numa das peças, carregada de tons patrióticos, surgem imagens de rua das
Diretas-Já, que a Globo à época boicotou e escondeu do público. A emissora
tenta reescrever a história do ponto de
vista que hoje lhe é mais conveniente.)
O fato é que Celso Pitta é hoje um cadáver político, e a Globo não vai abrir
mão de exibir o seu troféu em praça pública -ou em horário nobre. Há alguma relação entre o linchamento do
prefeito (não entro no mérito das denúncias; pretendo
apenas politizar a política, inclusive a da TV) e o estilo
"Linha Direta", que sai vitorioso dessa história. Quando
uma emissora faz as vezes da Justiça, é preciso refletir melhor sobre a qualidade da democracia que vige no país.
Não é o caso, evidentemente, de enfileirar com a concorrência, SBT e Bandeirantes à frente, que carrega Pitta no
colo em troca de audiência ou coisas piores.
O programa de Gugu Liberato aos domingos é nocivo à
vida civilizada. Amaury Jr. e cia. não merecem ter seus
nomes citados -a simples menção já os dignifica. Esse é
o lado caricato da nossa miséria democrática. Quanto ao
outro, mais fundamental, digo que não basta colocar o
negro no pelourinho nem desembarcar de ACM depois
de agradecer pelos serviços prestados -a Globo, aliás, é
causa e efeito da curva descendente do senador. A lógica
do espetáculo que vai vingando no noticiário alinha com
uma nova forma de barbárie. Democracia é outra coisa. O
povo, mais uma vez, se diverte com o banquete que a elite
lhe preparou para a festa dos 500 anos.
E-mail: fbsi@uol.com.br
Texto Anterior: Astrologia - Barbara Abramo: Um domingo inspirado Próximo Texto: Filmes de hoje Índice
|