São Paulo, domingo, 02 de julho de 2000


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CRÍTICA

Mr. Cid e o rebanho fantástico

Alcino Leite Neto

QUANDO o prestidigitador David Blaine aparece no "Fantástico", um outro mago entra em ação: Cid Moreira. De 1969 a 1996, ele foi locutor do "Jornal Nacional". Atualmente, além do programa dominical da Globo, grava a Bíblia em CDs. Tem 72 anos. O "Fantástico" não é sua aposentadoria. É a sua transubstanciação. A voz de Cid Moreira é sempre parte da história do ilusionismo no Brasil.
Em 31 de agosto de 1969, uma junta militar assumiu o poder no país, com a doença do presidente Arthur da Costa e Silva. No dia seguinte, entrou no ar o "Jornal Nacional". Hilton Gomes, então o primeiro locutor do programa, secundado por Cid Moreira, anunciou assim a estréia: "O "Jornal Nacional" da Rede Globo, integrando um novo Brasil, inaugura-se neste momento".
O "novo Brasil" seria o da fase áurea do regime militar. Em outubro daquele ano, Emilio Garrastazu Médici foi nomeado presidente da República. Em breve, Cid Moreira assumiria o principal posto do telejornal. A Globo tornou-se um instrumento de integração nacional, sim, mas a serviço dos militares e de seu projeto de modernização autoritária do país.
O "JN" se fez uma espécie de noticiário oficial do Brasil, entre novelas que beiravam os 90% de ibope. E Cid Moreira se tornou de algum modo a voz, ou o porta-voz, familiar, firme e afável, do país dos militares taciturnos e carrancudos.
Sobre isso, porém, muito já se falou e escreveu. Vamos voltar ao mago. Cid Moreira ficou 27 anos no "Jornal Nacional". O regime militar acabou em 1985, mas ele permaneceu lá, na sua telinha. Ainda havia algum trabalho a fazer. Sua saída do "Jornal Nacional" só ocorreu em 1996.
Qual é a data efetiva de seu declínio como porta-voz nº 1 da Globo e de seu país imaginário? É a mesma do debate na emissora entre Collor e Lula, candidatos à Presidência, em 1989. Assim Cid Moreira encerrou o programa: "Ao transmitir o encontro dos presidenciáveis, a televisão cumpriu mais uma vez o seu papel na democracia".
A opinião pública suspeitou, no entanto, que o programa não fora tão democrático assim, e que a Globo favorecera Collor. Permanecem misteriosos os bastidores do debate -mas, na ordem do espetáculo, o que se vê é tão verdadeiro quanto o que se esconde.
Naquela noite, a voz de Cid Moreira deixou ouvir o seu réquiem. Ela ficara demasiadamente antiquada para o tempo que se inaugurava. Sua empostação tinha algo de oficioso, educado, obsequioso e burocrático, que não combinava mais com o show público de variedades e vulgaridades que iria se irradiar pelo país.
Collor consagrava-se como estrela da casa, abrindo no país a era da política como entretenimento e extinguindo a função de Cid Moreira como voz do Brasil oficial.
Já não havia mais utilidade em alguém que funcionasse como eco da ordem política vinda do além-mídia (militar). O novo presidente faria política no corpo-a-corpo e como incessante presentificação televisiva de si mesmo.
Os anos continuaram. Ao mesmo tempo em que Cid Moreira entrava para o passado, sua dicção foi perdendo a solidez que tinha. Ganhou tom nebuloso e oracular. O locutor refugiou sua voz na Bíblia como se levasse ao exílio um velho ditador. Para quem cresceu vendo o "Jornal Nacional", escutar Cid Moreira recitando o Sermão da Montanha é como ouvir a notícia de um decreto-lei.
O Brasil hoje é a terra da desilusão política, por isso os brasileiros amam tanto as pegadinhas, os shows do milhão, os pagodes, os padres cantores, as loiras e os magos.
Num fim de mundo como esses, por que não convocar de novo a voz de Cid Moreira, com tudo que ela capitalizou de crendice popular, a fim de ilustrar as façanhas de mágicos?
Assim foi feito, e Cid Moreira foi trazido de volta ao seu rebanho. Primeiro, comentou as estripulias de Mr. M., o mágico desconstrucionista. Agora, analisa os truques de David Blaine, o prestidigitador hip hop das ruas, ou do divertido Mr. Euler, de 15 anos.
A respeito deste, o locutor observou, no último domingo: "Enquanto milhares de brasileiros fazem milagres para sobreviver, Mr. Euler sobrevive fazendo mágica".
Há alguma verdade no texto, claro. Como há muito de simpático nos mágicos. Mas, pela voz do milagre econômico dos anos 70, o que ecoa de fato na frase é o cinismo da emissora. Cid Moreira não aposentou o seu ilusionismo: hoje ele é porta-voz de pesadelos irônicos.

Genoma
Foi pífia e confusa a cobertura feita pelas TVs abertas brasileiras sobre o mapeamento do genoma humano no dia em que foi divulgada a notícia. É um dos acontecimentos do século e da história do homem.
A banalidade das TVs não explica o seu desconcerto: ocorre que a descoberta é complexa demais e "sem imagens" -ou com imagens conceituais e abstratas. Portanto, é difícil de ser espetacularizada. Mas essa notícia "intelectual" é apenas a primeira de uma série que está por vir e pode, no futuro, acabar ressaltando a inferioridade da TV em relação a outros meios -os alfabetizados.



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