São Paulo, domingo, 2 de agosto de 1998

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Pequenas empresas, grandes negócios

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião

Na terça-feira, 28, dia em que Sasha veio a este mundo estranho, ou véspera da maior privatização de um país não menos esquisito, o "Jornal Nacional", essa coisa cada vez mais esquisita e estranha, dedicou pesos bem diferentes aos dois "acontecimentos".
Com o nascimento da filha de Maria da Graça Xuxa Meneghel e Luciano Szafir, o "JN" gastou oito minutos e meio -um primeiro minuto de chamada, como se diz em jargão jornalístico, e mais sete minutos e meio no final, quando o sentimentalismo boçal viveu sua apoteose na tela.
A venda da Telebrás -incluídos os protestos do MST, a depredação do BNDES e a explicação didática de como a empresa seria fatiada aos comensais que disputariam seus filés no dia seguinte- recebeu do mesmo "JN" três minutos e 20 segundos de atenção.
Diferença aproximada de cinco minutos entre a duração de uma reportagem e outra -e cinco minutos em telejornalismo, como se sabe, são como eras geológicas.
Esse descompasso em prol da frivolidade e do showbiz em detrimento de assuntos de relevância pública é uma tendência não muito recente. Tem sido muito presente no "JN", mas é perceptível por toda parte. Isso, porém, não explica tudo.
O nascimento de Sasha foi o "gran finale" de uma história que começou bem antes. Precisamos recapitulá-la em pinceladas ligeiras. Num dos momentos críticos da fastidiosa guerra de audiência entre Gugu Liberato e Faustão, Xuxa decidiu anunciar sua gravidez no "Domingão" da Globo.
Lançado em programa de auditório como um carnê do Papatudo, o futuro bebê começou a ser empresariado pela mãe nove meses antes de nascer. Armava-se então o primeiro capítulo da novela de uma família que nunca foi.
De pé no palco, trajando um modelito branco com uma fenda no ventre (atenção pudibundos de plantão: pornografia é isso, não o que vocês vêem em "Torre de Babel"), Xuxa repetiu frases feitas sobre sua existência solitária. Trazia a tiracolo o seu garanhão, que, depois de ter cumprido suas funções como reprodutor, ainda teria de relinchar algumas palavras de amor diante de todo o Brasil antes de ser devolvido à cocheira da irrelevância a patadas.
O trabalho pesado, como sempre, ficou a cargo de Marlene Mattos, o Sérgio Motta de Xuxa, que foi lançando suas perfídias contra a família Szafir ao longo da gravidez da sua rainha.
Toda essa história desumana e, ao que parece, minuciosamente arquitetada, o que só faz agravar a sua atrocidade, veio coroar um comportamento determinado e obsessivo que fez de Xuxa o que ela é.
Sempre submetendo o que existe de mais íntimo, bonito e espontâneo (das crianças à sua gravidez) à lógica negocista da sua ascensão social, Xuxa começou como pin-up, frequentou a seguir a intimidade de celebridades e então deu o salto rumo ao paraíso, inaugurando, construindo, organizando e, durante muito tempo, monopolizando um modelo consumista e pervertido de entretenimento infantil pela TV.
Nunca, antes dela, alguém havia esparramado a sua imagem por tantas porcarias descartáveis, reais ou simbólicas, como Xuxa fez a partir da TV. Legiões de consumidores-mirins foram descobertas e aliciadas, transformando a infância num dos maiores filões da TV e da propaganda brasileiras.
Seu modelo foi copiado pelas rivais e multiplicou-se por toldos os canais, até se transformar em padrão hegemônico da telediversão infantil.
Os efeitos estupidificantes de Xuxa sobre gerações inteiras são visíveis. Não apenas na reação dos milhões de fãs (esses coitados engendrados pela sociedade de massas que se projetam em seus ídolos para de alguma forma driblar o horizonte limitado de suas vidas ou as limitações da vida ela mesma), mas também nas cenas constrangedoras que o "JN" exibiu na última terça-feira.
Jornalistas abobalhados apagaram da tela a crueldade embutida na história dessa gravidez e preferiram mostrar ao país o conto de fadas de uma princesinha que, já ao nascer, tem dois quartos, um deles com 80 metros quadrados.
A loucura humana não tem limites. Ainda no início do mês, nascia em São Paulo uma amiguinha de Sasha, Kadja. Alguém está lembrado? Sua mãe, Alessandra Pereira, pariu-a também no início de uma madrugada, mas na calçada, em frente a um hospital que havia recusado lhe internar. O Brasil é mesmo um país muito engraçado.


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