São Paulo, domingo, 03 de março de 2002

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REALIDADE SEM SHOW

A verdadeira Casa dos Artistas é aqui

Ana Carolina Fernandes/Folha Imagem
A ex-bailarina húngara Elisabeth Cserba



Em contraste com o badalado programa da TV, a instituição para idosos da zona oeste do Rio sofre com muitas carências e pede socorro


FERNANDA DANNEMANN
FREE LANCE PARA A FOLHA

FUNDADA em 1918, a instituição conhecida como "Casa dos Artistas", em Jacarepaguá (zona oeste do Rio), e que oficialmente chama-se Retiro dos Artistas, não tem o glamour do "reality show" da TV, mas muitas dificuldades. Funcionários estão com salários atrasados, dívidas ameaçam o fornecimento de luz, água e telefone, ratos transitam pelo ambulatório. À frente da "Casa" há dois anos, o ator Stephan Nercessian vem fazendo campanhas na Rede Globo e promovendo eventos para angariar fundos e melhorar a vida dos 41 idosos residentes, muitos deles ex-atores. "Quando assumi, as dívidas chegavam a R$ 2 milhões, contraídas em 20 anos", diz ele. "Tem sido difícil, mas, por incrível que pareça, a situação está melhor."
Não há médico em período integral, o que, segundo a Secretaria Municipal de Saúde do Rio, é ilegal. Nem psicólogo, assistente social ou nutricionista em jornadas regulares. No ambulatório, faltam remédios e equipamentos. Se algum dos idosos passar mal, é preciso correr para um hospital na ambulância doada pela primeira-dama do Rio, Rosinha Matheus. Foi ela, através da ONG Vida Obra Social, quem viabilizou a reforma da pequena vila de 35 casinhas de dois quartos -abafadíssimas-,do refeitório e do teatro com 300 lugares, onde Altair Farias da Silva, 84 anos, pretende voltar a trabalhar como o palhaço Cocada. Ao som do "hilariê" de Xuxa em sua velha vitrola, ele relembra os tempos do circo e diz que ainda anima festas infantis. É também no teatro da "Casa dos Artistas" que Sylvia Guimarães, belíssima aos 80, pretende voltar ao palco. "Vou estrear uma peça que levei no Cacilda Becker, chamada "Deus e a Mãe", escrita por mim. Mas eu espero mesmo é por um convite da Globo", diz ela, que não gosta do "reality show" do SBT: "O Retiro dá de dez nesse programa do Silvio". Apesar dos planos de Altair e Sylvia, os residentes da "Casa" da vida real não costumam sonhar mais. A atriz Iolanda Cardoso, por exemplo, que já trabalhou em diversas novelas da Globo, está cega aos mais de 70 anos e apóia-se numa bengala enquanto afirma que está bem. Recentemente internada num hospital público, Iolanda foi levada ao Retiro pelos amigos Paulo Goulart e Nicete Bruno. Outro morador conhecido é José Carlos Kurt, que foi o antagonista louro e mal-humorado de "Os Trapalhões" durante anos. Desde 1996, ele vive lá com a mulher e a filha. Aos 69, e esquecido pelo público, Kurt tem mal de Alzheimer.

Piscinas
Mas há quem drible as dificuldades para manter-se ativo. O argentino Julio Natale, elegantíssimo em sua idade não revelada, cuida dos 25 mil livros e 17 mil discos doados ao Retiro, mantendo o acervo a salvo das goteiras e limpando tudo para evitar traças e mofo. Na biblioteca, cujas estantes ele mesmo construiu, o calor é insuportável. E, por falar em calor, as duas piscinas do lugar são impecavelmente limpas graças também a Julio, que gasta com a manutenção parte de seu tempo e de sua aposentadoria.
Mas, como não há um salva-vidas -exigência do Corpo de Bombeiros-, os residentes não podem se refrescar nas piscinas. A dançarina húngara Elisabeth Cserba, 80, campeã de natação na juventude, recorre à sombra das árvores do jardim. A sala de ginástica, um quartinho com alguns aparelhos, também não pode ser usada, pois falta instrutor.
Parece difícil ser feliz nesta "Casa dos Artistas", onde predominam o ócio, o saudosismo e as carências. Falta também coragem para assumir as queixas. Temendo represálias, dois residentes pediram anonimato ao reclamarem da falta de qualificação dos funcionários e da qualidade da comida.
Em meio a tantas diferenças entre a "Casa dos Artistas" real e a da TV, Sylvia Guimarães diz que adora viver ali. "Não me falta nada e sou bem tratada, por incrível que pareça", diz. Rosa da Cunha, 67, atriz portuguesa que veio para o Brasil em 1958, tem os olhos tristes e lamenta a falta de horizontes. "Na TV não há papel para artistas velhos", afirma. Coraci Pereira da Silva, o palhaço Tuska, com passagens pelos programas da Xuxa e dos Trapalhões, diz que quando aparece trabalho, as agências ficam com parte do cachê. Enquanto isso, Noêmia dos Santos, também dançarina, troca de roupa pela terceira vez no dia, passa um batonzinho e sai para comprar água e refrigerante a fim de abastecer a geladeira. E arremata: "Vai uma Coca-Cola aí?"



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