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CRÍTICA
"Reality show" banaliza o amor
ESTHER HAMBURGER
Uma das perversidades da cultura contemporânea
é a banalização do amor. Transformada em bem
supremo, entendida de maneira individualista,
sem muito espaço para o compartilhar de emoções complexas, quase que reduzida ao gozo, a realização
amorosa se transforma em um ideal que justifica a instabilidade dos envolvimentos, encoraja e direciona o consumo e empobrece a convivência.
Procurada à exaustão, a felicidade amorosa fica cada
vez mais difícil. Os envolvimentos genuínos são raros. E o
excesso de mediações dificulta o desenvolvimento das fagulhas de interação
verdadeira, que de vez em quando rompem a monotonia dos encontros formais, para os quais basta pouco ou nada
mais que o piloto automático. A fórmula
dos "reality shows" capta e expressa, de
maneira perversa, essa fascinação contraditória pelo amor que satura a mídia
contemporânea e trunca os relacionamentos.
Na semana que passou, Fox estreou
"Temptation Island", e, esta semana,
Multishow leva ao ar "Survivor". Os dois
programas são "reality shows" de sucesso no exterior. Talvez os dias de glória do
gênero tenham passado. Mas infelizmente o formato de produção barata resiste e persiste. Apesar dos relativos baixos índices de audiência alcançados pela
segunda versão de "No Limite", as emissoras continuam a promover um gênero
inócuo, para não dizer perverso, de programação.
"Reality shows" estimulam a vaidade no sentido mais
mesquinho do termo, reforçam a ilusão de que participar
do espetáculo, qualquer que seja ele, seria via privilegiada
de ascensão, como se os donos dos rostos que aparecem
exaustivamente na mídia detivessem "realmente" algum
poder. Baseados na exploração perversa da fofoca, na exposição de seres humanos a situações frequentemente ridículas, na melodramatização de histórias amorosas privadas, "reality shows" estimulam a busca pela interpretação excessiva e reduzem os participantes voluntários à
posição de ratos de laboratório.
Vale ainda observar que, ao virar enlatado, exibido em
outra língua, em outros tempos e territórios, o "reality
show" provavelmente perde muito de seu apelo jornalístico e rompe o pacto de cumplicidade público/protagonistas que baseia a legitimidade da fórmula.
No início dos anos 90, os franceses, chocados com o sucesso de público gerado por versões locais do gênero, teorizaram sobre as redefinições dos limites entre o espaço
público e privado, nas quais a dramatização de situações
íntimas, em cadeia nacional, implica. No berço do iluminismo, o declínio do homem público, para aludir ao livro
de Richard Sennett, choca. E pensadores como Pierre
Chambat e Alain Ehrenberg, editores de um volume da
revista "Esprit", dedicado ao assunto, colocaram o dedo
na ferida.
A partir de suas observações é possível pensar o "reality
show" como formato que envolve algum tipo de participação de cidadãos, até então reduzidos à posição de telespectadores, em espetáculos que podem pedir desafios do
tipo gincana ou dramatizações de suas próprias intimidades.
Elementos de "reality shows" estão
presentes em programas de auditório,
telejornais e teleficção. É como se a
narrativa melodramática saísse das
páginas dos romances, dos palcos do
teatro, das telas de cinema, para alinhavar nossos pequenos dramas cotidianos, tornando-os matéria-prima,
pronta para ser exibida e compartilhada, com aquele frescor da notícia
quente e convincentemente autêntica,
transmitida ao vivo, gravada em loco,
ou no mínimo, representada pelos
próprios protagonistas.
Não é difícil imaginar que seja possível gerar formas alternativas de representação, que incorporem a participação, promovam a interação substantiva entre pessoas, propiciem a sensação de estender o alcance de nossos
sentidos no tempo e no espaço, oferecendo uma janela privilegiada para o mundo, capaz de
enriquecer repertórios compartilhados.
Os produtos culturais mais sofisticados, em qualquer
meio, são aqueles que conseguem aliar sucesso de público
e de crítica. Exemplares raros, frutos de ousadias criativas, são em geral trabalhos de artistas que conseguem
transcender o lugar comum, produzindo obras que estimulam a sensibilidade, permitem o crescimento, promovem a expansão da alma. E assim tocam no que é essencial.
O formato "reality show" produziu as coisas mais asquerosas que a televisão já exibiu. Situado no limiar entre
o virtual e o presencial, o gênero promove uma interpenetração promíscua. É assustador constatar que, em nome da primazia do gosto popular -proclamado aqui em
vão, e de maneira pejorativa-, o registro maniqueísta típico do melodrama, contamina a vida cotidiana e rege as
relações entre pessoas, condenadas a representar relações
baseadas em scripts recheados de intrigas e mal entendidos e carentes da magia dos encontros de verdade.
E-mail: ehamb@uol.com.br
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