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CRÍTICA
A dialética do bacalhau
FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião
Quem diria que o futuro da TV iria nos deixar
com saudades de Abelardo Barbosa, o Chacrinha,
morto no dia 1º de julho,
há dez anos? Mas dizer isso já parece constrangedor, como são infames
aqueles adesivos que
evocam saudosos os tempos da ditadura, quando
"éramos felizes e não sabíamos". A comparação
não é gratuita. Talvez seja
mesmo necessária para
contrabalançar um pouco a nova onda de canonização do "velho palhaço", como se viu por
exemplo na homenagem
que lhe prestou o "Fantástico", no último domingo.
Seria, mais do que uma
burrice, uma injustiça falar de Chacrinha apenas à
luz do regime militar. Seu
programa "Discoteca do
Chacrinha" era talvez o
mais popular da TV já em
59. Mas foi sob os militares, na Globo, que ele se
notabilizou para a eternidade. Se, por um lado,
Chacrinha serviu aos planos de integração nacional do regime, plano este
encampado pela Globo
em seu esforço estratégico de se tornar o veículo
hegemônico da comunicação de massas no Brasil, por outro lado Chacrinha também inspirou
os tropicalistas e agrediu
padrões de comportamento.
Mas, se incomodou os
milicos e foi por eles incomodado, sua, digamos, "faceta subversiva" (a ser rediscutida)
sempre esteve subordinada ao mais estrito êxito
comercial, nada mais.
Foi com bordões do tipo
"vim para confundir,
não para explicar" e
"vocês querem bacalhau?", ou pelo comportamento apalhaçado e
carnavalesco diante das
câmeras, que Chacrinha
se manteve aceso nos índices do Ibope. No fundo, sempre foi um homem da ditadura.
Usava seu programa,
sob o governo Figueiredo, para dizer ao país que
"João tem o povo no coração"; ainda em 84,
saiu em apoio a Maluf
contra Tancredo durante
a ressaca da frustração
das Diretas-Já. Em 80,
numa carta dirigida aos
órgãos de censura do regime, só trazida a público
em 95, Chacrinha, depois
de protestar contra o cerceamento à sua liberdade
de criação, pedia aos censores "providências no
sentido de que a censura
se exercite de modo igualitário para todos" e se
dispunha a contribuir
para a "melhoria dos critérios censórios do
país".
É bom recordar essas
coisas porque, além de
significativas em si mesmas, ajudam a redimensionar uma imagem revolucionária de Chacrinha forjada pelo Tropicalismo e seus seguidores.
Sei bem que essa imagem é antes estética do
que política, mas o problema é exatamente esse.
Não pára em pé, sem que
se veja de perto o outro
lado da moeda (aqui a
dialética do bacalhau), a
idéia consagrada de que
Chacrinha foi o grande
canibal eletrônico da miséria brasileira, o Oswald
de Andrade da cultura de
massas tupiniquim.
É fato que ele foi um
precursor da liberação
dos costumes e do experimentalismo nos programas de auditório. Fez
com que as câmeras alucinassem em cena, bagunçou o coreto, erotizou o auditório com suas
chacretes, abriu espaço
para a linguagem chula e
para os duplos sentidos.
Tudo isso, no entanto, se
rotinizou, se tornou hegemônico e adquiriu um
sentido escancaradamente conservador. Suas
crias estão aí -sem o seu
talento criativo e seu carisma, é verdade-, disputando audiência a tapa
durante a semana e aos
domingos.
Meninas seminuas
dançando como quem
treina aeróbica, concursos de calouros, aberrações e dramas pessoais
transformados em espetáculo, apelos vulgares e
clichês eróticos, distribuição de prêmios e de
esmolas à ralé -Chacrinha, o grande pai disso
tudo, não estaria fazendo
exatamente a mesma coisa hoje em dia? Quando,
em 67, pagou um prêmio
em dinheiro para o homem que prendeu o Bandido da Luz Vermelha,
não estava sendo também um inspirador remoto dos hábitos consagrados hoje por Ratinho?
São questões, pois, como dizia o velho guerreiro, "na TV, nada se cria,
tudo se copia".
Ora, ora, resolveram
apagar o casal de lésbicas
de "Torre de Babel". A
Globo chegou a cogitar
em manter Leila (Silvia
Pfeifer) viva, transformando-a em heterossexual, militante da luta
antidrogas ou mamãe de
um bebê adotivo. Mas ela
vai mesmo pelos ares,
junto com seu par, na explosão do shopping. Vitória do obscurantismo
carola. Prometo voltar ao
tema algum dia com mais
vagar, porque dessa toca
sai coelho -e como.
E-mail: fbsi@uol.com.br
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