São Paulo, domingo, 5 de julho de 1998

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CRÍTICA
A dialética do bacalhau

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião

Quem diria que o futuro da TV iria nos deixar com saudades de Abelardo Barbosa, o Chacrinha, morto no dia 1º de julho, há dez anos? Mas dizer isso já parece constrangedor, como são infames aqueles adesivos que evocam saudosos os tempos da ditadura, quando "éramos felizes e não sabíamos". A comparação não é gratuita. Talvez seja mesmo necessária para contrabalançar um pouco a nova onda de canonização do "velho palhaço", como se viu por exemplo na homenagem que lhe prestou o "Fantástico", no último domingo.
Seria, mais do que uma burrice, uma injustiça falar de Chacrinha apenas à luz do regime militar. Seu programa "Discoteca do Chacrinha" era talvez o mais popular da TV já em 59. Mas foi sob os militares, na Globo, que ele se notabilizou para a eternidade. Se, por um lado, Chacrinha serviu aos planos de integração nacional do regime, plano este encampado pela Globo em seu esforço estratégico de se tornar o veículo hegemônico da comunicação de massas no Brasil, por outro lado Chacrinha também inspirou os tropicalistas e agrediu padrões de comportamento.
Mas, se incomodou os milicos e foi por eles incomodado, sua, digamos, "faceta subversiva" (a ser rediscutida) sempre esteve subordinada ao mais estrito êxito comercial, nada mais. Foi com bordões do tipo "vim para confundir, não para explicar" e "vocês querem bacalhau?", ou pelo comportamento apalhaçado e carnavalesco diante das câmeras, que Chacrinha se manteve aceso nos índices do Ibope. No fundo, sempre foi um homem da ditadura.
Usava seu programa, sob o governo Figueiredo, para dizer ao país que "João tem o povo no coração"; ainda em 84, saiu em apoio a Maluf contra Tancredo durante a ressaca da frustração das Diretas-Já. Em 80, numa carta dirigida aos órgãos de censura do regime, só trazida a público em 95, Chacrinha, depois de protestar contra o cerceamento à sua liberdade de criação, pedia aos censores "providências no sentido de que a censura se exercite de modo igualitário para todos" e se dispunha a contribuir para a "melhoria dos critérios censórios do país".
É bom recordar essas coisas porque, além de significativas em si mesmas, ajudam a redimensionar uma imagem revolucionária de Chacrinha forjada pelo Tropicalismo e seus seguidores.
Sei bem que essa imagem é antes estética do que política, mas o problema é exatamente esse. Não pára em pé, sem que se veja de perto o outro lado da moeda (aqui a dialética do bacalhau), a idéia consagrada de que Chacrinha foi o grande canibal eletrônico da miséria brasileira, o Oswald de Andrade da cultura de massas tupiniquim.
É fato que ele foi um precursor da liberação dos costumes e do experimentalismo nos programas de auditório. Fez com que as câmeras alucinassem em cena, bagunçou o coreto, erotizou o auditório com suas chacretes, abriu espaço para a linguagem chula e para os duplos sentidos. Tudo isso, no entanto, se rotinizou, se tornou hegemônico e adquiriu um sentido escancaradamente conservador. Suas crias estão aí -sem o seu talento criativo e seu carisma, é verdade-, disputando audiência a tapa durante a semana e aos domingos.
Meninas seminuas dançando como quem treina aeróbica, concursos de calouros, aberrações e dramas pessoais transformados em espetáculo, apelos vulgares e clichês eróticos, distribuição de prêmios e de esmolas à ralé -Chacrinha, o grande pai disso tudo, não estaria fazendo exatamente a mesma coisa hoje em dia? Quando, em 67, pagou um prêmio em dinheiro para o homem que prendeu o Bandido da Luz Vermelha, não estava sendo também um inspirador remoto dos hábitos consagrados hoje por Ratinho?
São questões, pois, como dizia o velho guerreiro, "na TV, nada se cria, tudo se copia".

Ora, ora, resolveram apagar o casal de lésbicas de "Torre de Babel". A Globo chegou a cogitar em manter Leila (Silvia Pfeifer) viva, transformando-a em heterossexual, militante da luta antidrogas ou mamãe de um bebê adotivo. Mas ela vai mesmo pelos ares, junto com seu par, na explosão do shopping. Vitória do obscurantismo carola. Prometo voltar ao tema algum dia com mais vagar, porque dessa toca sai coelho -e como.


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