São Paulo, domingo, 05 de agosto de 2001

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CRÍTICA

Horário "nobre"

LUIZ CAVERSAN

UM DIA de semana qualquer, televisão ligada no horário nobre. O controle remoto convida a um passeio pelos canais de uma operadora que, como todas elas, mescla canais abertos com pagos.
Começa a odisséia. Um dia, disse aqui que a TV é uma espécie de janela para o inferno. Se correta essa assertiva, então o controle remoto pode facilmente se converter num passaporte para levar o incauto telespectador aos mais recônditos do desconhecido reino das trevas.
1º clique no aparelhinho: um religioso ouve compenetrado, copo d'água à frente, a voz da mulher que revela seus males. Ela desfia um novelo de problemas e os atribui a uma amiga (muy amiga!), evangélica assim como ela. Veredicto do pastor: "Não adianta ser evangélico. Tem que conhecer a Deus" (sic).
2º clique: a tela mostra apenas números. A fonte é a Organização das Nações Unidas e se informa o seguinte: 253 pessoas detêm 45% de toda a riqueza do mundo e apenas três (sim, três) pessoas acumulam bens que equivalentes ao PIB dos 48 países mais pobres do planeta.
3º clique: um homem sério e enfático afirma, para não deixar dúvidas: "Uma criança deixada sozinha numa biblioteca nunca vai virar um leitor".
4º clique: um culto num templo lotado. No palco (sim, templo tem palco) há uma fila de mulheres, que vão contando seus casos ao pastor munido de microfone. Uma delas diz ser camelô e que foi abençoada por uma mulher humilde e passou a vender mais. Suas palavras são traduzidas por uma moça no canto do vídeo para a linguagem de sinais dos surdos-mudos.
5º clique: a pista completamente deserta do hipódromo do Rio de Janeiro deixa claro que a corrida ainda não começou, mas os letreiros informam que aquele páreo pagará R$ 25 mil. "Uma boa grana pra você", estimula o locutor.
6º clique: o homem engravatado, cabelo superalinhado, informa que todos os partidos de esquerda participarão do grande debate sobre o socialismo. Haverá convidados estrangeiros.
7º clique: a mulher diz para outro pastor, também de microfone em punho, que estava com uma dor horrível na nuca; passou assim que ela cruzou a porta do templo. A próxima fiel afirma que até já tinha escrito uma carta de despedida para seus filhos, porque iria se suicidar. Depois de entrar no templo, sua vida mudou "completamente".
8º clique: só a partir de 1840 os teares tornaram os tecidos acessíveis aos mais pobres, e, em 1850, surgiram as máquinas de costura. Até então, todos faziam suas próprias roupas, e as vidraças só surgiram nas janelas no fim do século 18. Narração de um documentário em forma de projeção de slides.
9º clique: o deputado Conte Lopes, que nunca escondeu sua predileção por criminosos exterminados, alerta: "Se tirarem os PMs que ficam nas muralhas dos presídios, eu temo pela população de São Paulo".
10º clique: escoteiros desfilam na parada do dia 9 de julho, que ocorreu semanas antes. Seguem-se fanfarras, guardas municipais e outras fardas.
11º clique: o sotaque pseudobaiano e as "quengas" não deixam dúvida: estamos em "Porto dos Milagres".
12º clique: a música romântica em espanhol ao fundo, a luz estourada no rosto da mocinha e a dublagem também não deixam dúvida: estamos em uma novela mexicana.
13º (ufa) clique: a câmera se aproxima do rosto da moça simpática que diz: "Maluf lidera para governador. A população de São Paulo não esquece."
14º clique: Sabrina Parlatore anuncia, com grandiloquência, que Amaury Júnior tem uma sensacional entrevista com um italiano em cujo corpo aparecem chagas. A cena seguinte é de matar: traz o apresentador dialogando com um homem com uma imensa cruz sangrenta na testa e outros ferimentos pelo corpo. Sinceramente, não deu para prestar atenção no que o italiano revelava.
Clique número 15: na MTV, em vez de videoclipe para relaxar, entrevista com líder dos Engenheiros do Hawaii.
Ponto final. Chega.
Agora, só mesmo um filme para esquecer rapidamente tudo o que verteu assustadoramente da telinha.
E o filme, graças aos céus, é excelente, embora de temática difícil: "Filadélfia", com Tom Hanks e Denzel Washington. Visto e revisto, vale outra olhada por dois motivos básicos: a interpretação oscarizada de Hanks e a inteligência da argumentação do advogado vivido por Washington, sexista e preconceituoso que transforma sua defesa de um colega demitido por ter Aids num libelo em prol da liberdade de opção sexual. O que, na verdade, estava em jogo. Exemplar.
Como o filme tem aí seus oito anos, ao final comovente pensei: ainda bem que as coisas mudaram. Engano: na manhã seguinte, a jornalista Laura Mattos informava na Ilustrada que a MTV decidira que não vai manter em sua programação o tão propalado namoro gay. Pressionada pelo velho e odioso preconceito, aquele mesmo que percorria as ruas de Filadélfia no século passado.



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