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São Paulo, domingo, 06 de abril de 2003

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CRÍTICA

O paredão do moralismo

BIA ABRAMO

DIZ a Rede Globo que a versão quatro do "Big Brother" é só para o ano, enquanto o SBT anuncia um pacote de "reality shows", do tipo mais esportivo, ainda em 2003. Qualquer que seja o formato de "reality show" que venha a prevalecer na televisão brasileira, é fato que eles pegaram e, para o bem e para o mal, colocam em questão alguns procedimentos da TV.
No momento em que a coluna é escrita, o resultado do último "Big Brother" ainda não está decidido, mas, seja ele qual for, tanto a vitória quanto a derrota serão justificadas e entendidas de forma moral. Quem quer que ganhe, é porque fez por merecer. Ao abocanhar os R$ 500 mil do prêmio, o ganhador terá as virtudes premiadas e os pecados relevados.
Submetidos a escrutínio constante durante dias e dias, os participantes exibem tudo o que podem e que imaginam ser o apropriado em termos de comportamento para fazê-los "merecedores" do prêmio. O julgamento, na verdade, é duplo: junto com o público, os outros participantes também avaliam, rotulam e constroem suas alianças e estratégias baseados em aferições sobre valores tais como honestidade, lealdade, legitimidade.
Some-se a isso o imperativo de estabelecer uma tipologia -cada um, querendo ou não, acaba por representar uma espécie de papel, assumir uma persona e, novamente, a adequação ou não ao papel, a distância maior ou menor entre a personalidade assumida e a "real" também se tornam motivo para o exame moral, do tipo "verdadeiro" ou "falso", aqui como sinônimo de mentiroso. Aqui, o moralismo do telespectador, que julga tanto o caráter do "personagem" quanto a performance do "ator", tangencia a moral de quem elabora as regras que cercam a realização do programa.
É exatamente nesse terreno que as mãos da direção, edição e roteirização do programa mais pesam. Ao contrário do que diz ao vivo o apresentador, ao público não é oferecida uma visão furtada, uma "espiada", mas sim um olhar que obedece a algum tipo de plano narrativo. Imaginem: trata-se de sustentar a atenção do público em um bando de zés-ninguém, absolutamente desinteressantes, em um cotidiano tornado ainda mais tedioso por conta do confinamento.
A única maneira, parece ser a resposta das experiências já acumuladas até agora, é construir o programa de forma a simular alguma espécie de narrativa, que, paradoxalmente, se aproxime o máximo possível de uma narrativa ficcional. O "reality show" só "acontece" na medida em que se afasta da realidade, em que a substitui pela ficção (torta, barata e simplória, mas, ainda assim, ficção).
Neste último "Big Brother", a discussão transcendeu o plano dos procedimentos técnicos e estendeu-se para os resultados de votação do público, o que deu munição para alegações indignadas sobre a idoneidade do programa -e obscureceu o que talvez fosse mais importante, que era desvendar em que medida a manipulação que ficcionaliza o "reality show" dirige os julgamentos do público.
Menos moralista e mais realista, Silvio Santos, em sua admirável mistura de truculência e experiência televisiva, desfaçatez e carisma, tanto sabia disso que manipulou as regras à (sua) vontade e ao gosto do público em "Casa dos Artistas 1", para melhor formatar uma narrativa -e foi tão diabolicamente bem-sucedido que chegou até a criar o que já se pode chamar de convenções do "gênero", como a redenção da pobreza ("Boa Noite, Cinderela"?), o casal contra tudo e todos, a ingênua perigosa, o brucutu simpático etc.


E-mail:
biabramo.tv@uol.com.br


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