São Paulo, Domingo, 07 de Fevereiro de 1999
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CRÍTICA

Um país solto no ar

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor interino de Opinião

"O Roberto Requião tem uma frase que acho perfeita para o governo tucano: "Se você desligar a televisão, acaba o governo FHC". É um governo feito para a televisão". (José Simão, em entrevista à revista "Carta Capital" da última semana)
Dito de forma genérica, é óbvio que qualquer governo instalado numa sociedade de massas depende em algum grau da televisão para funcionar. Mas não é essa platitude, ensinada nas escolas de marketing político, que está em jogo na frase de José Simão atribuída ao senador.
Mal comparando, a situação brasileira de hoje, descontado o fato da censura, é análoga à do regime militar, que fez da TV um instrumento para unificar o território nacional e vender à população a fantasia do Brasil grande do milagre econômico. Não se trata mais, obviamente, de unificar virtualmente o território, mas de certa forma de maquiar ou esconder a desintegração do país, de resto previsível desde o início do primeiro ciclo fernandino, quando o sentimento de nação (essa velharia nacionalista) foi substituído sem mais pelo tucanato, que assumiu como positiva a idéia mais moderna de "mercado emergente".
Desde o início estava implícito que aquilo que não fosse aproveitável por esse mercado (o "emergente" fica por conta dos "sucessomaníacos") seria simplesmente usado como carvão para queimar na fogueira do progresso.
Está aí o carvão, na forma de uma distribuição de renda que não saiu do lugar em quatro anos (continua sendo a pior do planeta), na herança de uma miséria que remonta a 500 anos, na legião crescente de novos desempregados e subempregados.
Em nome de uma modernidade pretendida e de uma suposta norma civilizada, nas quais o país sempre se mirou, abandonou-se exatamente a preocupação sobre a causa que nos impede de alcançá-las: a miséria. Ela continua viva e intolerável, mas deixou de ser um desafio para o governo e uma preocupação da sociedade. A situação não é apenas de desestruturação social e de destituição de direitos, mas, antes, de abandono de promessas não cumpridas. São ingênuos, simplórios, populistas ou mal-intencionados aqueles que se atrevem a lembrá-las.
A adesão ao jargão da racionalidade, aos clichês do mercado e a uma certa impassividade em graus inéditos acabou por produzir, além de frieza e letargia diante de urgências reais, uma dissociação irracional e selvagem entre as palavras e as coisas, como se não fosse mais possível nomeá-las nem estruturar uma linguagem comum, pública e sedimentada na realidade. O Brasil parece padecer de uma espécie de afasia.
Seria preciso, à luz do que foi dito, rever a análise corrente a respeito dos programas ditos populares que surgiram na esteira do Plano Real. Costuma-se explicar o sucesso de Ratinho e colegas pelo fato de que as mesmas pessoas que passaram a comer frango e usar dentadura também puderam pagar as prestações de seu primeiro televisor. A TV estaria respondendo a uma nova demanda criada pelos recém-integrados ao mercado. Talvez seja o contrário. Talvez a TV já estivesse antecipando e colaborando para a desintegração social em curso. O que são, afinal, esses programas de auditório que trazem pobres diabos para fazer rápidas incursões pela Bélgica e depois os devolvem à Índia se não a vanguarda de um processo histórico cujos resultados já são muito palpáveis do lado de cá da tela, na chamada vida real, mas que a TV dita séria, ou hegemônica, não pode nem pensar em reproduzir?


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