São Paulo, domingo, 7 de dezembro de 1997.



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CRÍTICA
'Fantasia' careta da ex-sem-terra

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião

Não foi a entrevista de Collor a principal notícia da revista "IstoÉ" que circulou esta semana. Ele continua o playboy de sempre: barbarizou com a filha de Lula para vencer a eleição em 89; volta a barbarizar agora com o sobrinho morto de Itamar para voltar à política.
A grande "notícia" da revista está nas páginas 84 e 85, estampada num anúncio da Duloren. Nele, a ex-sem-terra Débora Cristina Rodrigues (curioso como a identidade de alguém possa ser definida por meio de dois prefixos que denotam ausência) aparece vestindo calcinha e sutiã. Tem o pé esquerdo sobre um banquinho (desses usados para ordenhar vacas) e derrama um balde de leite sobre sua coxa em evidência. Ao fundo, uma paisagem campestre onde aparecem várias vaquinhas malhadas, duas das quais estão copulando (cópula obviamente obtida por um truque malfeito de montagem). Completa a cena uma mensagem escrita à mão, em letras de forma, onde se lê: "Aprendi a gostar de leitinho na fazenda dos meus primos". O censo de humor dos publicitários é espantoso. Quem serão os primos de Débora? Os sem-terra? As vaquinhas? Em jargão publicitário esse tipo de cafajestada é conhecido por "polissemia".
Débora Cristina vai seguindo os passos de suas antecessoras. Saiu do anonimato para as páginas de "Playboy" e agora salta dessas para os programas "infantis" da TV. No meio do caminho, vai se submetendo a papéis atrozes, como o da propaganda em questão, que funcionam como trampolim para que seja finalmente aceita no círculo dos eleitos. Logo estará pronta para posar ao lado de um desses representantes da "sociedade" que circulam entre festas "beneficentes" e colunas sociais.
Esta semana Débora Cristina estreou no SBT fazendo um sucesso estrondoso com o vespertino "Fantasia". O programa é obviamente uma tentativa de neutralizar o concorrente da Globo, "Malhação". Neste, jovens de classe média carioca protagonizam dramas musculares e existenciais dentro de uma academia de ginástica. Vidas inteiras são consumidas em ritmo aeróbico dentro do templo sagrado da nossa época. Sem contrariar esse preceito básico de que as pessoas valem quanto pesam, o canal de Silvio Santos o mistura com outros ingredientes populares.
O apelo erótico e o ideal norte-americano da felicidade física, presentes em "Malhação", ficam no SBT por conta de 50 modelinhos que, trajando vestidinhos coloridos bem curtinhos, dançam e sorriem compulsivamente sem dar trégua ao espectador. Mas, como estão no SBT e não são ainda atrizes emergentes da Globo em busca de uma ponta na próxima novela, as modelinhos de "Fantasia" podem atuar também como clones das chacretes. Elas têm, por assim dizer, um pé na malhação e outro nos programas de auditório. A fórmula se completa com jogos imbecis e farta distribuição de prêmios em dinheiro, também recursos dos programas de auditório que hoje estão consagrados em toda a programação.
A ex-musa dos sem-terra agora é mais um instrumento do machismo mercantil e americanizado da nossa época. Todo o discurso feminista que consumiu gerações durante décadas se desmancha diante da TV, que vai enfileirando as suas barbies brejeiras.

Por uma coincidência, na última quarta-feira, momentos antes de "Fantasia" ir ao ar, Caetano Veloso participava, no mesmo SBT, do "Programa Livre", de Serginho Groisman. Comentando o espírito dos dias que correm, Caetano disse que a liberação dos anos 60 resultou no seu contrário. Disse ele: "Perdemos os bons modos e ficamos com os preconceitos". Batata.



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