São Paulo, domingo, 08 de dezembro de 2002

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"Nada de rir sem barulho"

FLÁVIO MIGLIACCIO

Quando fui aprovado, por acaso, para fazer um curso de interpretação no Quarto Centenário da cidade de São Paulo, vi que precisava frequentar teatros.
Mas e dinheiro para os ingressos?
Chegava na porta e ficava olhando... pelo menos para decorar os nomes dos atores, das peças... o que me ajudava muito nas aulas teóricas.
Um dia, estava na porta do Teatro Santana, no centro da cidade, lamentando minha sorte por não poder assistir ao espetáculo em cartaz, quando alguém me perguntou: "Você quer entrar?".
Era o que eu mais queria. Estava louco para ver Dulcina de Moraes e Odilon Azevedo, dois artistas que faziam muito sucesso na época.
O sujeito me colocou pra dentro, e descobri que aquilo tinha um preço: eu ia fazer parte da claque.
Fui posto no meio de umas dez ou 15 pessoas, e ele orientou: "Bom, vocês já sabem, não é? Nada de exagerar no riso, mas também nada de rir sem barulho... de boca fechada".
Foi assim que eu descobri uma nova profissão: rir, aplaudir.
No início, tudo bem. Ria com grande desenvoltura. Com o tempo, porém, fui ficando como os outros... triste, muito triste por ter que rir sem vontade ou com uma fome miserável.
Um dia, cheguei a ouvir perfeitamente uma mulher resmungar num dos monólogos do Odilon: "Que saudades daquela minha claque, lá no Nordeste...". Ela era uma das carpideiras que costumam chorar os mortos nos velórios.
Quando descobri que o sujeito que me contratara possuía uma rede de claque, pedi-lhe, pelo amor de Deus, pra fazer um rodízio de espetáculos, pois não aguentava mais ver os mesmos atores, rir das mesmas piadas.
Percebi, depois, o quanto foram importantes aqueles tempos de claque na minha formação profissional. Graças a eles, consegui assistir a quase todos os espetáculos da época.
Ajudaram-me, também, a respeitar, ver com carinho e jamais deixar de ir visitar o pessoal da claque nos programas humorísticos de que participo.
Afinal, o criminoso sempre volta ao local do crime.


Flávio Migliaccio é ator, cineasta e dramaturgo


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