São Paulo, domingo, 09 de abril de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Um museu de grandes novidades

Fernando de Barros e Silva
COMECEI a escrever neste espaço no dia 2 de junho de 96. Daquele texto, intitulado "Atayde Patreze é o Ed Wood da TV Brasileira", até o que sai hoje são 184 colunas, ao longo de três anos e dez meses, com pequenas interrupções. Vendo-as em retrospecto, num rápido sobrevôo, reconheço, sem falsa modéstia, que houve algum progresso. E que um ponto de vista, afinal, se formou. É hora de tentar um pequeno balanço dessa experiência e explicar ao leitor que de alguma forma a acompanhou as razões que me levam a deixar de escrever a coluna a partir de hoje.
São dois os motivos da interrupção. O primeiro e principal, prático e objetivo, é que o tempo para me dedicar à TV ficou escasso demais desde que assumi as funções de editor do Painel político da Folha, há dois meses. Para escrever semanalmente sobre o assunto, não basta ver TV; é preciso ainda disponibilizar um tempo de reflexão continuada, sem o que não se vai a lugar nenhum. É essa disponibilidade que hoje me falta.
Há, porém, uma segunda razão, de ordem subjetiva: todo colunista, depois de algum tempo de atividade permanente, enfrenta o desgaste inevitável de sua capacidade de reflexão. Mais do que pequenos vícios de análise é à tendência de cansaço e fossilização do pensamento que me refiro. Que ela frequentemente seja simultânea à projeção pública do autor é um problema adicional, que torna tudo ainda mais constrangedor. Em crítica, a legitimidade de um ponto de vista depende dos argumentos que o sustentam, não do nome daquele que escreve. Quem se assume e vende como grife não merece ser levado a sério. Interromper a coluna tem também esse sentido: olhar para o que já foi feito e realimentar o espírito para o que ainda está por fazer.
A TV é em geral um assunto muito aborrecido. E aqueles que dela se ocupam são como que empurrados para a mediocridade, a condescendência ou a selvageria que lhes são próprias. Mas, se escrever sobre TV encerra uma armadilha, a tarefa pode não ser irrelevante. É verdade que a TV atrai uma multidão de vassalos e se aproveita mesmo daqueles que a exploram como fonte de fofocas e maledicências. O que ela não tolera é ser levada a sério, porque não é essa a sua língua. É preciso ter um pé dentro e outro fora da TV para que sua vocação à falta de seriedade e à irrelevância seja vista como um problema, que não é mais só dela, mas do país.
Na origem remota desta coluna, está uma observação do crítico literário Roberto Schwarz, a quem, em matéria intelectual, devo muito mais. Numa conversa sobre cultura com Susan Sontag e Marilena Chaui, realizada na Folha, em junho de 93, Schwarz disse a certa altura: "Há alguns lugares onde a baixeza própria à sociedade moderna se acumula e se condensa. A TV certamente é um deles, os jornais são outro. São lugares que nos levam a experimentar o caráter inextricável da enrascada em que vivemos. Por isso mesmo, o sentimento de impotência e perplexidade frente à TV ou instituições parecidas é uma experiência crucial, que poderia ser didática, se os espíritos oposicionistas fossem menos acomodados. A TV é tão pesada e intolerável que dificilmente alguém se anima a parar para lhe tomar a medida, para lhe especificar os horrores, com a paciência e a determinação necessárias. A tolerância e a simpatia com que ela conta na intelectualidade brasileira é um indício seguro da nossa falta de espírito crítico".
Sete anos depois, a atualidade dessas palavras me parece evidente. Se é verdade que a TV se tornou objeto de discussão mais sistemática, inclusive por parte de grupos organizados, também é fato que o foco das preocupações se volta quase sempre para eventuais "abusos e desvios popularescos" da programação, que seria preciso evitar. Essa disposição normativa, mais que crítica e analítica, não toca o cerne do problema, mesmo porque as chamadas "baixarias" que tanto incomodam alguns não estão, ou ao menos não somente nem principalmente, onde costumam ser identificadas. Com ou sem Ratinho a enrascada é a mesma.
Já é um clichê dizer que a TV e o Brasil passaram por grandes transformações sob o reinado fernandino. No que importa e é substantivo, porém, os horrores próprios de uma e outro parecem sinistramente intocados. A modernização brasileira tem isso de perverso e característico: se faz reciclando e reincorporando o atraso, sem extirpá-lo. A gangsterização do Estado e da miséria no eixo Rio-São Paulo, o "pólo globalizado " do país, é o exemplo imediato mais eloquente do que quero dizer.
No caso da TV, vimos a ascensão e projeção de mercado do chamado mundo-cão; acompanhamos a novidade da TV paga, festejada como revolução pelo ideólogos de sempre; estamos vendo a metamorfose em curso na Globo, rumo a um neopopulismo que visa continuar lhe assegurando a hegemonia publicitária e o quase monopólio do público. Muita coisa mudou, mas...
De tudo, fica a sensação de que o ineditismo do quadro atual se resume a dois pontos: à mercantilização abissal da TV, por um lado; e à reconfiguração, dentro e fora da tela, do velho abismo social, por outro. Continuamos, em suma, vendo e vivendo um museu de grandes novidades.
0A todos os leitores que colaboraram com a coluna, com críticas, sugestões ou elogios, minha gratidão. Até.

E-mail: fbsi@uol.com.br


Texto Anterior: Astrologia - Barbara Abramo: A prece do girassol
Próximo Texto: Filmes de hoje
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.