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Um museu de grandes novidades
Fernando de Barros e Silva
COMECEI a escrever neste espaço no dia 2 de junho
de 96. Daquele texto, intitulado "Atayde Patreze é o
Ed Wood da TV Brasileira", até o que sai hoje são 184
colunas, ao longo de três anos e dez meses, com pequenas interrupções. Vendo-as em retrospecto, num rápido
sobrevôo, reconheço, sem falsa modéstia, que houve algum
progresso. E que um ponto de vista, afinal, se formou. É hora de tentar um pequeno balanço dessa experiência e explicar ao leitor que de alguma forma a acompanhou as razões que me levam a deixar de escrever a coluna a partir de hoje.
São dois os motivos da interrupção. O primeiro e principal,
prático e objetivo, é que o tempo para me dedicar à TV ficou
escasso demais desde que assumi as funções de editor do
Painel político da Folha, há dois meses.
Para escrever semanalmente sobre o assunto, não basta ver TV; é preciso ainda
disponibilizar um tempo de reflexão
continuada, sem o que não se vai a lugar
nenhum. É essa disponibilidade que hoje
me falta.
Há, porém, uma segunda razão, de ordem subjetiva: todo colunista, depois de
algum tempo de atividade permanente,
enfrenta o desgaste inevitável de sua capacidade de reflexão. Mais do que pequenos vícios de análise é à tendência de
cansaço e fossilização do pensamento
que me refiro. Que ela frequentemente
seja simultânea à projeção pública do autor é um problema adicional, que torna
tudo ainda mais constrangedor. Em crítica, a legitimidade de um ponto de vista
depende dos argumentos que o sustentam, não do nome daquele que escreve.
Quem se assume e vende como grife não
merece ser levado a sério. Interromper a coluna tem também
esse sentido: olhar para o que já foi feito e realimentar o espírito para o que ainda está por fazer.
A TV é em geral um assunto muito aborrecido. E aqueles
que dela se ocupam são como que empurrados para a mediocridade, a condescendência ou a selvageria que lhes são
próprias. Mas, se escrever sobre TV encerra uma armadilha,
a tarefa pode não ser irrelevante. É verdade que a TV atrai
uma multidão de vassalos e se aproveita mesmo daqueles
que a exploram como fonte de fofocas e maledicências. O
que ela não tolera é ser levada a sério, porque não é essa a sua
língua. É preciso ter um pé dentro e outro fora da TV para
que sua vocação à falta de seriedade e à irrelevância seja vista
como um problema, que não é mais só dela, mas do país.
Na origem remota desta coluna, está uma observação do
crítico literário Roberto Schwarz, a quem, em matéria intelectual, devo muito mais. Numa conversa sobre cultura com
Susan Sontag e Marilena Chaui, realizada na Folha, em junho de 93, Schwarz disse a certa altura: "Há alguns lugares
onde a baixeza própria à sociedade moderna se acumula e se
condensa. A TV certamente é um deles, os jornais são outro.
São lugares que nos levam a experimentar o caráter inextricável da enrascada em que vivemos. Por isso mesmo, o sentimento de impotência e perplexidade frente à TV ou instituições parecidas é uma experiência crucial, que poderia ser didática, se os espíritos oposicionistas fossem menos acomodados. A TV é tão pesada e intolerável que dificilmente alguém se anima a parar para lhe tomar a medida, para lhe especificar os horrores, com a paciência e a determinação necessárias. A tolerância e a simpatia com que ela conta na intelectualidade brasileira é um indício seguro da nossa falta de
espírito crítico".
Sete anos depois, a atualidade dessas palavras me parece
evidente. Se é verdade que a TV se tornou objeto de discussão mais sistemática, inclusive
por parte de grupos organizados, também é
fato que o foco das preocupações se volta
quase sempre para eventuais "abusos e desvios popularescos" da programação, que seria preciso evitar. Essa disposição normativa,
mais que crítica e analítica, não toca o cerne
do problema, mesmo porque as chamadas
"baixarias" que tanto incomodam alguns
não estão, ou ao menos não somente nem
principalmente, onde costumam ser identificadas. Com ou sem Ratinho a enrascada é a
mesma.
Já é um clichê dizer que a TV e o Brasil passaram por grandes transformações sob o reinado fernandino. No que importa e é substantivo, porém, os horrores próprios de uma
e outro parecem sinistramente intocados. A
modernização brasileira tem isso de perverso
e característico: se faz reciclando e reincorporando o atraso, sem extirpá-lo. A gangsterização do Estado e da miséria no eixo Rio-São Paulo, o "pólo
globalizado " do país, é o exemplo imediato mais eloquente
do que quero dizer.
No caso da TV, vimos a ascensão e projeção de mercado do
chamado mundo-cão; acompanhamos a novidade da TV
paga, festejada como revolução pelo ideólogos de sempre;
estamos vendo a metamorfose em curso na Globo, rumo a
um neopopulismo que visa continuar lhe assegurando a hegemonia publicitária e o quase monopólio do público. Muita
coisa mudou, mas...
De tudo, fica a sensação de que o ineditismo do quadro
atual se resume a dois pontos: à mercantilização abissal da
TV, por um lado; e à reconfiguração, dentro e fora da tela, do
velho abismo social, por outro. Continuamos, em suma, vendo e vivendo um museu de grandes novidades.
0A todos os leitores que colaboraram com a coluna, com críticas, sugestões ou elogios, minha gratidão. Até.
E-mail: fbsi@uol.com.br
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