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CRÍTICA
Por que, afinal, o Brasil de Regina Casé é tão 'legal'?
FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião
O "Brasil Legal" de Regina Casé é uma delícia. O
programa é tão superior,
tão mais sofisticado, inteligente e generoso do que
tudo o que se costuma ver
na TV que chega a parecer injusto criticá-lo. Tudo ali, a começar pela
apresentadora, é "legal"
demais. Isso, porém, começa a ser um problema
quando se lembra que o
país "real" é bem menos
divertido que o Brasil de
Casé.
Seria no entanto um
equívoco dizer que "Brasil Legal" "esconde" o
país. Talvez não haja na
TV brasileira um programa tão revelador, tão sincero e espontâneo como
esse. Diante dessa contradição, como ficamos?
"Brasil Legal" não é um
programa com pretensões jornalísticas -não
se prende à lógica discursiva nem quer informar,
denunciar, comentar ou
analisar nada de forma
objetiva. Sua extraordinária força iluminadora
reside no ar descompromissado, na naturalidade, na linguagem lúdica e
solta capaz de extrair momentos intensos de lirismo e poesia das situações
mais banais e prosaicas.
Ou, dito de outra forma,
"Brasil Legal" leva para a
TV o formato da crônica,
da qual Rubem Braga,
entre outros, era mestre.
Tentando caracterizar
essa última num belo ensaio intitulado "A Vida
ao Rés-do-Chão", o crítico Antonio Candido afirma a certa altura que ela,
a crônica, "pega o miúdo
e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma
singularidade insuspeitadas. Ela é amiga da verdade e da poesia nas suas
formas mais diretas e
também nas suas formas
mais fantásticas, sobretudo porque quase sempre utiliza o humor. (...)
A sua perspectiva não é a
dos que escrevem do alto
da montanha, mas do
simples rés-do-chão".
Seria difícil encontrar
uma descrição mais feliz
do "Brasil Legal".
Na última terça-feira,
Casé dedicou o programa
ao mundo do telefone.
Fazendo-se passar por
uma telefonista que recebe e transmite recados
pelo Teletrim, ela foi puxando os fios de vidas
concretas e de emoções
singulares abafadas pelo
ambiente hostil daquele
serviço mecanizado,
anônimo e impessoal.
Um recado como:
"Nelsinho, parabéns. Tô
levando cerveja e empadinha", ao ser transmitido por Casé, ganhou uma
graça e uma doçura inesperados por trás do seu
ridículo involuntário. O
carinho da apresentadora ia contagiando e humanizando as situações
mais corriqueiras e tolas.
Em outra passagem,
Casé visitou uma cidadezinha no interior do Espírito Santo onde havia um
único posto telefônico e
onde algumas pessoas jamais tinham usado o aparelho para comunicar-se.
Novamente, a atitude carinhosa da apresentadora
com os entrevistados
transformou o que seria
um problema (a ausência
de telefone) num exemplo de pureza superior.
E aqui chegamos ao que
talvez seja o problema
central desse grande programa: o fascínio diante
de formas de vida que se
reproduzem à margem
da modernidade, em descompasso com o padrão
dito civilizado. O risco
disso é uma certa mistificação da miséria, uma estetização apologética da
"vida na favela", como
se elas não fossem o resultado e a expressão de
uma brutal exclusão social. A injustiça, a carência material são de certa
forma "amaciadas" pela
alegria que parece jorrar
espontaneamente de cada personagem abordado
por Casé.
Mas, pensando melhor,
talvez seja um erro condenar esse programa em
nome de esquemas abstratos ou de um esquerdismo sociologizante. Fico então dividido entre
duas atitudes: não sei se
acredito mais na frieza do
crítico, que tenta explicar
racionalmente como é
possível uma forma tão
improvável de felicidade;
ou, pelo contrário, se já
interiorizei a frieza do
burguês, que se diverte
despreocupadamente à
custa desse "povo simples" que faz o Brasil tão
legal.
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