São Paulo, domingo, 10 de novembro de 2002

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CRÍTICA

Dívida pública

EUGÊNIO BUCCI

A REDE Record promete, para domingo que vem, a estréia de mais um "game show". O nome da telebrincadeira será "No Vermelho", uma alusão mais que explícita às contas daqueles que se acham endividados. Com efeito, os candidatos serão sempre endividados crônicos. Como prêmio, terão suas dívidas quitadas. Sim, é desalentador. O simples anúncio de que um programa desse tipo estreará no Brasil já é ofensivo.
É incrível como a televisão pode ultrapassar barreiras na arte de ofender sua audiência. Ela esculhamba tudo. Agora, zomba da instituição nacional da dívida. Todo mundo deve dinheiro neste país.
A começar do próprio. Os bancos, é claro, devem menos. Bancos têm por hábito ser credores. Quem não é banco deve. O povo deve. Os patrões devem. As empresas devem. As empresas de mídia, estas devem desesperadamente. Há aquelas que devem montanhas de reais. A Record, vai ver, não deve tanto, talvez porque tenha descoberto para bem de sua prosperidade que a fé move montanhas. De dólares.
Talvez por isso, se permita fazer chacota, espezinhando da tragédia das concorrentes. As Organizações Globo somam dívidas de US$ 2,6 bilhões, conforme vem sendo noticiado. (A propósito, ainda não se sabe se algum acionista da Globopar se inscreverá como voluntário em "No Vermelho". Seria uma alternativa. Seria um modo de virar o feitiço contra o feiticeiro, de virar a piada contra o piadista, de fazer com que a Record pagasse a dívida da Globo. Enquanto isso, prevalece o achincalhe total.)
A televisão escarnece de todos a um tal ponto que passa a escarnecer de si mesma, de sua própria miséria. Escarnece de sua penúria financeira e de seu déficit de imaginação.
A umas emissoras, como a Globo, faltam aportes em dólar; a outras, como a Record, falta sensibilidade. Não para que ela demonstre piedade da Globo, o que seria mais escárnio ainda, mas para que ela respeite a dor econômica dos brasileiros. Ao ameaçar lançar esse "No Vermelho", a Record humilha as vítimas anônimas do desemprego. Fora isso, expõe, sem saber, sua própria desumanidade, a desumanidade de quem ridiculariza em público a inadimplência dos pequenos.
Se vingar o novo cirquinho da Record, os endividados entrarão em cena como atração bizarra. Suas histórias tristes serão narradas em clipes comoventes, tão lacrimosos quanto lucrativos. É constrangedor. É deprimente perceber que, saldando dívidas mínimas, o entretenimento produz lucros vultosos. Servindo como personagens grotescos, como deformidades financeiras, os voluntários ajudarão a emissora a extrair mais e mais verbas de caridosos anunciantes.
O pior é que há uma justificativa aparentemente racional para esse tipo de espetáculo. A justificativa de sempre: não importa que os candidatos sejam humilhados pois, no final, podem ser socorridos. É curiosa essa alegação, que protege tanto os diretores quanto os telespectadores do programa. Os primeiros se escondem sob a máscara de quem leva ajuda aos necessitados, nem que seja uma ajuda que nada mais é que um subproduto do circo. E tome circo. Os segundos alegam a mesma ajuda para se desculpar do prazer que sentem ao ver a ruína dos outros: "Nós rimos, mas aquele de quem rimos pode ser compensado pela quitação de suas dívidas". Seria uma troca justa, portanto.
Não se trata exatamente de cinismo de quem faz TV, nem de hipocrisia de quem vê. Trata-se apenas de uma falsificação de racionalidade que termina por enganar a todos. Aquele que se expõe ao ridículo acredita-se consciente de sua humilhação. Aquele que assiste ao show não se vê como voyeur sádico. E, finalmente, os responsáveis por mais esse tipo de aberração televisiva apresentam-se como benfeitores. E chamam, sorridentes, o intervalo comercial.


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