São Paulo, domingo, 11 de maio de 1997.



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CRÍTICA
Era FHC já tem sua 'pedagogia do oprimido'

FERNANDO DE BARROS E SILVA
especial para a Folha

O "Manhattan Connection" aparentemente resistiu à morte de Paulo Francis. No seu lugar, o programa do canal de TV paga GNT, que vai ao ar nos domingos, às 22h, com várias reprises durante a semana, agora recebe um convidado por vez, que compõe a mesa de debates ao lado dos jornalistas Lucas Mendes, Caio Blinder e Nelson Motta.
A saída foi hábil, embora Francis, para voltar ao lugar-comum, seja mesmo insubstituível. Menos por sua suposta genialidade e mais porque emprestava ao programa um tal escracho, uma tal selvageria retórica, que todos os assuntos "sérios" iam sendo triturados por uma espécie de cinismo sem tréguas, até que tudo sucumbisse a uma espécie de ridículo que isentava ele próprio, Francis, do ridículo de estar ali, sentado num estúdio ao lado de mais três marmanjos, fingindo se preocupar com os "fatos do mundo".
Na época de Francis, ligávamos a TV num ato de sadomasoquismo, para rirmos de nós mesmos, das nossas atrocidades que víamos ali tão bem expressas por meio da sua fala solta, às vezes inteligente, às vezes simplesmente suja e abjeta. Essa auto-ironia o "Manhattan" perdeu. Perto das tiradas de Francis, as gracinhas de Nelson Motta parecem uma excursão mirim à Disneylândia, são apenas tolas.
O novo "Manhattan", ao contrário de Francis, se leva a sério, pretende ser um resumo cosmopolita dos "acontecimentos".
Mas o principal problema do programa talvez seja o seguinte: a sua pauta é de esquerda, mas a condução da discussão vai sempre no sentido de desqualificá-la.
É nesse descompasso entre o que anuncia e o que realiza que reside o segredo e o charme do programa, o que o torna tão irresistível e atual para o público VIP e "descolado" brasileiro. Afinal, não poderia haver na TV uma tradução mais fiel do modo de vida tucano a que estamos hoje todos submetidos.
O "Manhattan" traduz a seu modo a questão mais geral do engajamento intelectual no Brasil, que se coloca hoje mais ou menos nos seguintes termos: ou se é fernandista ou, então, burro e atrasado. Não se trata, obviamente, de escolher entre uma coisa e outra, mas de entender porque essa equação se tornou uma unanimidade.
Nada mais justo -e sintomático- que o convidado da última semana tenha sido o cineasta e jornalista Arnaldo Jabor. Afinal é ele, mais do que qualquer outro intelectual do círculo íntimo do presidente, o ideólogo popular da era FHC, o representante da "nova esquerda", realista, pragmática, sofisticada, atenta -como eles dizem- às ambiguidades da nova ordem mundial, que não comporta mais o preto no branco, os golpes de foice e martelo da velha esquerda burra, dogmática, messiânica, populista, que, presa a uma utopia regressiva, acaba fazendo o jogo da direita (mas qual?).
Não é por acaso que a maioria dos adjetivos do parágrafo acima foram citados por Jabor quando discorria sobre os sem-terra. Mas poderia ser qualquer outro tema, desde o lesbianismo na TV norte-americana até o recente filme baseado no livro de Fernando Gabeira.
Tudo no programa assume ares razoáveis, sensatos, pós-utópicos, como se ainda fosse preciso parecer ser de esquerda para poder deixar de sê-lo sem culpa.
O novo "Manhattan" é uma verdadeira "pedagogia do oprimido" da era FHC. Parafraseando uma citação de Jabor, "é preciso ter cuidado com os intelectuais; às vezes eles conseguem o que querem".



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