São Paulo, domingo, 11 de agosto de 2002

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CRÍTICA

Blindem o meu caixão

EUGÊNIO BUCCI

NO DOMINGO passado, o apresentador Gugu Liberato, do SBT, dedicou parte de seu programa de auditório a promover a venda de blindagem de automóveis. Foi um filme de terror ao cair da tarde. De dar medo no cachorro da família. Imaginei os telespectadores vendo aquilo e fazendo as contas do que economizar para transformar a viatura familiar num minitanque de guerra. Carro blindado, de acordo com o "Domingo Legal", é muito mais que uma necessidade: é um objeto do desejo ou, mais precisamente, do pânico.
O poder de convencimento da mórbida propaganda se articulou em dois atos. Primeiro, foi ao ar a dramatização de um sequestro fictício. Nele, um "empresário" dirige seu carro pela estrada quando é interceptado por salteadores que atiram contra seu pára-brisa. Rapidamente, engata marcha a ré, sai do cerco, vira a direção e foge, cantando os pneus. Salva-se porque a lataria e os vidros do automóvel são impenetráveis aos disparos dos bandidos.
É possível que o final feliz do nosso "empresário" tenha deixado uma sensação de alívio na platéia. É possível, também, que, ato contínuo, a platéia tenha ficado apreensiva, muito apreensiva. Para muita gente, o filminho funcionou como ameaça de morte. Seria apenas um clichê malfeito, não fosse a chantagem que ele encerra, bem no estilo da linguagem visual de programas policiais como o "Linha Direta", da Globo. Visto por aí, ele veio à tela menos como um quadro fictício e mais como a reconstituição de um crime real. Um tipo especial de reconstituição, pois retrata não o que já aconteceu mas o que certamente vai acontecer com o telespectador. É como se a televisão dissesse: "Eis aqui, telespectador, a "reconstituição" de seu futuro. Se você não tiver o cuidado de andar protegido num "bunker" sobre rodas, será uma presa fácil. Não terá salvação."
Depois do filminho, apavorante embora chinfrim, veio o segundo ato do merchandising chantagista. Liberato saiu do estúdio e, seguido pelas câmeras, foi até um pátio onde um fabricante de blindagem fez a demonstração de seu produto. Um senhor que se dizia o engenheiro responsável da empresa sentou-se no lugar do motorista enquanto um outro o alvejava com pistolas dos mais diferentes calibres. Suspense. Mais medo. Mais finais felizes. Os projéteis, como dizem os escrivães de polícia, eram todos barrados pelos vidros e pelas portas. O engenheiro responsável, com seus cabelos brancos, saía intacto. Num outro carro, dois manequins de gesso (ou de plástico, não sei), desses manequins de loja, eram perfurados pelas balas. Ali não havia blindagem. Ali a morte pegava carona. Ali estava o carro dos pobres, dos mortais, o carro que o telespectador tem na garagem.
Desliguei a TV. Incrível como a propaganda de blindagem acaba sendo a propaganda da violência. A pretexto de se demonstrar como o sistema é de fato inexpugnável, os vendedores sempre se valem dos mais variados modelos de trabucos, garruchas, mil ferramentas de nos matar. Eu não quero discutir aqui a necessidade prática de se usar um carro blindado em meio à insegurança pública. Pode ser que seja mesmo um recurso razoável, o que não importa. O que eu discuto é a transformação da blindagem num objeto do desejo, um objeto promovido pela indústria do entretenimento convertida em indústria do pânico. A blindagem, como fetiche, será que representa mesmo um canal para o impulso de viver? Ou representa o contrário? Quem sonha com a blindagem não estará sonhando com isolar-se inteiramente de toda estranheza e, no fim, do próprio risco de viver? Não estará sonhando com uma forma de morte? Se a resposta for sim, blindar o carro será o mesmo que blindar um esquife. E morar ali dentro.
Tive uma vontade repentina de blindar a televisão, mas logo desisti.


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