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"Dona Flor" une populismo cultural e apelo publicitário
FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião
Como entender o encontro de Jorge Amado
com a Globo no momento em que se festeja a reconciliação da cultura
com a realidade nacional? Seria mais um caso
de amor com o Brasil? O
slogan parece mesmo ter
sido feito especialmente
para vender "Dona Flor e
Seus Dois Maridos",
atualmente em exibição.
Parece haver nessa minissérie uma vontade de
redescobrir o "país profundo", com sua gente,
seus costumes, sua ginga,
sua sensualidade, sua
força vital. É como se todas as nossas mazelas se
desmanchassem numa
espécie de transe carnavalesco, como se sucumbissem ao tempero apimentado da Bahia, ao ritmo frenético dos tambores, às formas arredondadas de Flor, à preguiça
malandra de Vadinho.
Essa visão sensual e romantizada do país tropical, esse caso de amor
que a minissérie põe em
cena tem seus pressupostos e suas consequências.
Deixemos estas últimas
de lado, por ora. Quais
são os pressupostos dessa adaptação de "Dona
Flor"? Trata-se de uma
sintomática manifestação de populismo cultural instruído pela estética
publicitária que se tornou hegemônica na TV,
ou ao menos na Globo.
Diga-se, de passagem,
que esse amálgama de
populismo e propaganda
também vem fazendo escola fora da telinha. Filmes como "Tieta", de
Cacá Diegues, ou "O Que
É Isso, Companheiro?" ,
de Bruno Barreto, seguem a mesma fórmula,
sempre a pretexto de "redescobrir o Brasil".
Voltando à "Dona
Flor". O populismo, no
caso, decorre muito do
próprio Jorge Amado, da
maneira doce, indulgente e amaneirada com que
sua pena pinta o povo
brasileiro. Seu êxito provavelmente deve muito à
facilidade com que ele
colore e erotiza as tensões do país, à maneira
com que sua prosa oleosa
e sanguínea folcloriza a
miséria e os costumes
populares, tornando-os
pitorescos e de consumo
agradável.
Pois bem, essa literatura adocicada, ou de tensão mínima, para usar
uma expressão do crítico
Alfredo Bosi, ganhou um
tempero adicional na
adaptação da Globo. Cuidaram de melar o melado
ou, para ser mais exato,
de aguar o aguado, já que
o resultado é esteticamente insosso.
Edson Celulari e Giulia
Gam fariam um ótimo
par em "Romeu e Julieta", mas não servem para
interpretar Flor e Vadinho. No caso de Giulia
Gam, o problema não é a
falta de talento, mas o seu
desperdício. É uma das
melhores atrizes brasileiras; falta-lhe, no entanto,
qualquer resquício de
"baianidade". Será que
no ano 2000 teremos um
casal de albinos desfilando pelados pelo Pelourinho? Mas isso talvez seja
o traço menos ostensivo
da esterilização publicitária dessa "Dona Flor".
Desde o primeiro capítulo, desde as primeiras
sequências da minissérie,
quando surgiram na tela
cenas do Carnaval em ritmo de timbalada, ficou
claro que até mesmo a
crônica estereotipada
dos costumes regionais
ficaria subordinada à linguagem brutalista dos
comerciais. Foi inevitável
desde o início a sensação
de que aquilo tudo mais
parecia um anúncio de
chinelo ou de cerveja. Ficamos como que esperando alguém gritar no
meio da multidão: "dê
folga para seus pés".
Aqui já estão as implicações dessa "Dona
Flor": a vitória de uma
fantasia de país que se vê
transformado na tela em
produto exótico, mas
limpo de toda a sujeira e
de toda a violência, pronto para ser consumido
pelos lares na forma de
uma redescoberta da realidade nacional.
"Dona Flor" consagra
intelectualmente figuras
como Arnaldo Jabor, ou
tantos outros acionistas
da "Metaforabrás" (a
máquina de metáforas do
tucanismo), como Nizan
Guanaes, que ainda no
ano passado exultava
num programa de TV ao
dizer que precisamos todos "acreditar na marca
Brasil, começar a nos
vender como país".
A Globo já está fazendo
a sua parte. Ironia das
ironias, o país profundo,
a pátria romantizada e o
sentimento populista
reaparecem na cultura
embrulhados pelo apelo
publicitário justamente
no momento em que o
governo, por a + b, vai rifando da sua agenda a referência nacional.
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