São Paulo, domingo, 12 de abril de 1998

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"Dona Flor" une populismo cultural e apelo publicitário

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião

Como entender o encontro de Jorge Amado com a Globo no momento em que se festeja a reconciliação da cultura com a realidade nacional? Seria mais um caso de amor com o Brasil? O slogan parece mesmo ter sido feito especialmente para vender "Dona Flor e Seus Dois Maridos", atualmente em exibição.
Parece haver nessa minissérie uma vontade de redescobrir o "país profundo", com sua gente, seus costumes, sua ginga, sua sensualidade, sua força vital. É como se todas as nossas mazelas se desmanchassem numa espécie de transe carnavalesco, como se sucumbissem ao tempero apimentado da Bahia, ao ritmo frenético dos tambores, às formas arredondadas de Flor, à preguiça malandra de Vadinho.
Essa visão sensual e romantizada do país tropical, esse caso de amor que a minissérie põe em cena tem seus pressupostos e suas consequências. Deixemos estas últimas de lado, por ora. Quais são os pressupostos dessa adaptação de "Dona Flor"? Trata-se de uma sintomática manifestação de populismo cultural instruído pela estética publicitária que se tornou hegemônica na TV, ou ao menos na Globo. Diga-se, de passagem, que esse amálgama de populismo e propaganda também vem fazendo escola fora da telinha. Filmes como "Tieta", de Cacá Diegues, ou "O Que É Isso, Companheiro?" , de Bruno Barreto, seguem a mesma fórmula, sempre a pretexto de "redescobrir o Brasil".
Voltando à "Dona Flor". O populismo, no caso, decorre muito do próprio Jorge Amado, da maneira doce, indulgente e amaneirada com que sua pena pinta o povo brasileiro. Seu êxito provavelmente deve muito à facilidade com que ele colore e erotiza as tensões do país, à maneira com que sua prosa oleosa e sanguínea folcloriza a miséria e os costumes populares, tornando-os pitorescos e de consumo agradável.
Pois bem, essa literatura adocicada, ou de tensão mínima, para usar uma expressão do crítico Alfredo Bosi, ganhou um tempero adicional na adaptação da Globo. Cuidaram de melar o melado ou, para ser mais exato, de aguar o aguado, já que o resultado é esteticamente insosso.
Edson Celulari e Giulia Gam fariam um ótimo par em "Romeu e Julieta", mas não servem para interpretar Flor e Vadinho. No caso de Giulia Gam, o problema não é a falta de talento, mas o seu desperdício. É uma das melhores atrizes brasileiras; falta-lhe, no entanto, qualquer resquício de "baianidade". Será que no ano 2000 teremos um casal de albinos desfilando pelados pelo Pelourinho? Mas isso talvez seja o traço menos ostensivo da esterilização publicitária dessa "Dona Flor".
Desde o primeiro capítulo, desde as primeiras sequências da minissérie, quando surgiram na tela cenas do Carnaval em ritmo de timbalada, ficou claro que até mesmo a crônica estereotipada dos costumes regionais ficaria subordinada à linguagem brutalista dos comerciais. Foi inevitável desde o início a sensação de que aquilo tudo mais parecia um anúncio de chinelo ou de cerveja. Ficamos como que esperando alguém gritar no meio da multidão: "dê folga para seus pés".
Aqui já estão as implicações dessa "Dona Flor": a vitória de uma fantasia de país que se vê transformado na tela em produto exótico, mas limpo de toda a sujeira e de toda a violência, pronto para ser consumido pelos lares na forma de uma redescoberta da realidade nacional.
"Dona Flor" consagra intelectualmente figuras como Arnaldo Jabor, ou tantos outros acionistas da "Metaforabrás" (a máquina de metáforas do tucanismo), como Nizan Guanaes, que ainda no ano passado exultava num programa de TV ao dizer que precisamos todos "acreditar na marca Brasil, começar a nos vender como país".
A Globo já está fazendo a sua parte. Ironia das ironias, o país profundo, a pátria romantizada e o sentimento populista reaparecem na cultura embrulhados pelo apelo publicitário justamente no momento em que o governo, por a + b, vai rifando da sua agenda a referência nacional.



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