São Paulo, domingo, 13 de setembro de 1998

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CRÍTICA

Crise!? Que crise!? Salvem as baleias...

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião

Hoje vamos fazer um exercício: comparar as manchetes (notícias de destaque, anunciadas logo na abertura da edição) de três telejornais que foram ao ar na última quarta-feira, dia 9. Curiosamente, são três telejornais exibidos em rede nacional, no mesmo país e quase no mesmo horário.
O primeiro deles, o mais famoso, é o "Jornal Nacional", da Globo, apresentado pelo casal William Bonner e Fátima Bernardes. O segundo, o "Jornal da Record", ancorado por Boris Casoy. O terceiro, o "Jornal da Band", apresentado por Paulo Henrique Amorim.
Então, às manchetes:
"Jornal Nacional":
1. Luto em Anápolis. Vítimas do desastre na Anhanguera são entregues às famílias. Mas a identificação dos corpos é difícil.
2. Resultado da perícia em Vitória. Piloto da lancha que atropelou Lars Grael tinha bebido, mas ele nega.
3. O ator Gerson Brenner chora. É a emoção de sair da UTI.
4. Defeito num brinquedo provoca morte no parque de diversões.
5. O caminho da liberdade. Dezenove anos depois, a baleia que foi Willy é treinada para voltar ao oceano.
"Jornal da Record":
1. Pela primeira vez em 30 dias a moeda russa sobre frente ao dólar.
2. Fernando Henrique diz que números da ONU mostram que o governo se preocupa com o social.
3. Lula ataca ajuste fiscal do Planalto e diz que apoiaria se as medidas fossem corretas.
4. Rainha ameaça com invasões, e general Cardoso alerta para a ação radical do MST.
5. Estrangeiros formam filas na Polícia Federal para regularizar permanência no Brasil.
"Jornal da Band": 1. O governo briga com os bancos para estancar a fuga de dólares. Só hoje saíram quase US$ 2 bi do país.
2. A maior vítima do corte de gastos do governo é a saúde do brasileiro.
3. O piloto da lancha que decepou Grael tinha bebido álcool.
4. O promotor entrega ao Congresso 36 caixas com as informações que podem derrubar Clinton.

As manchetes evidenciam três maneiras de fazer jornalismo. Nenhuma é neutra. A da Globo faz lembrar os tempos das receitas de bolo da ditadura. Num dia particularmente delicado para o real, a emissora some com a crise, estrangula o espaço público e entorpece a patuléia com emoções baratas -tragédias e curiosidades do mundo animal. Enquanto isso, na mesma noite de quarta-feira, o ministro Pedro Malan dava uma longa entrevista sobre a crise à Globo News, o canal de notícias da Globo na NET. É uma troca: o governo fala ao círculo restrito dos formadores de opinião na TV privada (ou paga) aquilo que a Globo o ajuda a esconder da esfera pública.
No caso da Record, há evidente predomínio de assuntos de interesse coletivo, mas o viés adotado pelo jornal de Casoy é francamente favorável ao governo. Ali, Lula tem espaço privilegiado, mas FHC cuidou do social e o MST é uma ameaça à ordem. Casoy nunca escondeu que é um liberal de feições conservadoras, que tem apreço pelo pluralismo e zelo pelos assuntos de relevância pública.
O "Jornal da Band" é, de longe, o mais independente, adulto e crítico telejornal exibido em rede no país. Destoa, para melhor, numa época em que o jornalismo oscila entre o diversionismo e o jogo de esconde-esconde. A audiência do "Jornal da Band", no entanto, é irrelevante, residual, se comparada ao poder de fogo da Globo.
Esse show de baleias, macacos e tragédias da vida privada que tomou conta do "JN" é anterior à campanha eleitoral, à crise do real, e vai se estender para além delas. O "JN" é hoje um instrumento de aprofundamento da distância entre a Bélgica e a Índia -os dois países que formam a nossa Belíndia brasileira.

Ironia involuntária. Em outubro, estréia às 18h na Globo o remake de "Pecado Capital", novela de Janete Clair que marcou época em meados dos anos 70. A música de abertura da novela, de Paulinho da Viola, começa assim: "Dinheiro na mão é vendaval, é vendaval/ na vida de um sonhador, de um sonhador/ quanta gente aí se engana, e cai da cama/ com toda a ilusão que sonhou..." .
Qualquer relação com o mundo real é mera coincidência.


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