São Paulo, domingo, 13 de dezembro de 1998

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CRÍTICA

Um suflê para a classe média

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião

"Labirinto" entra na sua última semana muito prestigiado, pelo jeito fazendo mais sucesso do que muita gente esperava. Compreende-se. Trata-se de um belo suflê, e com a vantagem de se ver livre de alguns ingredientes que fazem desandar as novelas e as tornam tão intragáveis.
A Globo de início vendeu a sua minissérie como um biscoito fino; seu autor, Gilberto Braga, chegou a falar mesmo em trama "hitchcockiana", uma referência nobre tratando-se de um produto feito para a TV. Tudo isso era obviamente estratégia de marketing. Não há nem fumaça de Hitchcock no "Labirinto" global, e não é isso o que interessa.
Fórmula por fórmula, seria mais apropriado dizer que "Labirinto" sugere uma trama de Rubem Fonseca na ilha de "Caras". É erudito o suficiente para ser consumido sem vergonha por quem torce o nariz diante do "baixo nível" da TV e mundano o bastante para agradar a turma que se alimenta também do "baixo nível". Uma proeza que só a Globo sabe como fazer e tem cacife para realizar.
Feitas as contas, trata-se apenas de um thriller policial recheado com sexo, mas devidamente filtrado por uma estética elegante, publicitária, que não abre brechas para que seja considerado vulgar ou apelativo, mas é ao mesmo tempo capaz de satisfazer o apetite médio.
"Labirinto" tem mulheres exuberantes (provavelmente as duas mais desejadas do Brasil, sendo que uma delas, Malu Mader, é, além disso, uma atriz fora de série), tem Fábio Assunção para agradar a outra metade da platéia, tem intrigas de alcova e assassinato no mundo dos endinheirados. Tem até um pastiche de crônica social na visão acanalhada e inescrupulosa que Gilberto Braga pinta da elite local, com seus iates, suas trapaças intermináveis, suas coberturas na avenida Atlântica. São clichês que colam e passam por exemplos de realismo com tintas de denúncia social, embora sejam coisa bem distinta.
Desde que se tome esse suflê como uma peça de entretenimento, como uma amostra de que Gilberto Braga aprendeu direitinho a lição de casa, não há muito mais o que comentar. Essa é a vocação da Globo. É isso o que ela sabe fazer e é isso o que o público espera da mini-Hollywood encravada no Jardim Botânico.
Não é à toa que o novo cinema nacional, guardadas as exceções -que existem-, cada vez mais se aproxima do padrão de ficção hegemônico forjado no Projac.
O problema de "Labirinto" é portanto menos a sua banalidade e mais a aura de que esse tipo de produção está investida. Gilberto Braga tornou-se uma espécie de pequeno intelectual; sua obra, um pretenso espelho do país. Desde "Vale Tudo" ouve-se exaustivamente essa bobagem. É como se a pergunta "quem matou?" -Odete Roithman ou Otacílio Fraga, tanto faz-, motor do interesse das tramas de Gilberto Braga, pudesse ser transmudada num passe de mágica na pergunta "que país é este?".
A autoridade que a intriga policial ganha ao ser assinada por Gilberto Braga tem levado muita gente a dizer que já temos o nosso Balzac eletrônico do Brasil moderno, o que é, no máximo, uma boa piada. O Brasil que a classe média -a guardiã do "alto nível" na TV- vê refletido nas obras de Gilberto Braga diz muito mais sobre essa classe média e sobre a ascendência da Globo sobre ela do que sobre o próprio Brasil.
Esse realismo de butique, desinfetado da sujeira brasileira, que nos remete aos ares de Miami ou de Dallas, é ele próprio resultado histórico de uma sociedade que foi educada e deseducada pela TV, está boçalizada e perdeu a capacidade de ver a si mesma de maneira um pouco mais adulta e menos fantasiosa.
Seria o caso de perguntar então, à la Braga, quem matou o realismo brasileiro? É verdade que o cadáver já virou pó, mas, salvo engano, sua morte tem algo a ver com a ascensão do Cidadão Kane do Jardim Botânico.


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