São Paulo, Domingo, 14 de Março de 1999
Próximo Texto | Índice

CRÍTICA

Éticas, mulheres, tribos e ralés

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor interino de Opinião

O "Domingão do Faustão" tem agora um código de ética, divulgado em primeira mão por esta Folha no fim-de-semana passado. Esta coluna julgou oportuno reproduzi-lo no quadro ao lado acompanhado do seu avesso, um anticódigo, menos por espírito de porco e mais para que se possa confrontar um e outro, e ambos com a realidade. A iniciativa edificante da Globo não deve ser menosprezada, como se fosse mera empulhação, mas também não serve como garantia de nada. É evidente que, depois de flertar com o estilo Gugu, a direção do Faustão considerou que seria melhor enfrentá-lo em outros termos, apelando para o compromisso com uma suposta dignidade que o adversário não tem como sustentar. Faustão e Gugu não são iguais, obviamente. Mas a distância que os separa talvez seja da mesma ordem da que separa o "Domingão" do decálogo que agora o orienta.

Também na última semana, foi noticiada com grande destaque nos jornais a pesquisa "A mulher retratada pela TV", encomendada pelo grupo TVer, agora transformado em ONG. O grupo, ou a ONG, se propõe a analisar a TV brasileira, cobrar atitudes das emissoras e eventualmente interferir no rumo da programação. Tem gente muito séria e bem-intencionada, mas os resultados desse trabalho são bem decepcionantes.
Em primeiro lugar, parece pouco representativa uma pesquisa feita com 253 mulheres ouvidas pelo telefone. Pior que isso: a pesquisa colheu entrevistadas apenas nas classes A, B e C, ignorando as chamadas D, e E -isto é, o povão. Falha pouco perdoável quando a discussão sobre a TV deriva em boa medida dos efeitos de sua suposta "popularização".
Além disso, parece precária uma das conclusões da pesquisa: a imensa maioria das mulheres não se identificaria com o modelo feminino que lhe é apresentado pela TV. O grupo toma isso como um sintoma de descontentamento ou de distanciamento crítico. Como, então, explicar a indústria milionária de badulaques, brinquedos, roupas e acessórios de Tiazinha, Xuxa, Eliana, Angélica etc.? Os mecanismos de projeção e identificação alimentados pela indústria cultural são muito mais complexos e perversos do que faz supor essa análise -com o perdão- ingênua, como bem sabem membros do TVer.
Isso, de resto, fica evidente quando a pesquisa aponta que o programa ideal segundo o público feminino traria entre seus ingredientes o glamour do "Fantástico" e a pauta do "Silvia Poppovic". Que mulher "crítica" é essa que solicita um mingau pasteurizado, na forma e no conteúdo, como alternativa de programação?
Levanto essas objeções para concluir que sem um pouco de análise social e de crítica do indivíduo massificado -dessa mulher exaltada, no caso- pesquisas como a do TVer acabam servindo apenas para exercícios de beletrismo de classe média e resultam em metafísica. Por que, afinal, a TV é assim se a sociedade que a consome parece tão razoável?

O tom de lamúria dominou as críticas na imprensa sobre a reforma cosmética da MTV, que incorporou, com lugar de destaque, a turma do pagode e quejandos à programação no intuito desesperado de popularizá-la.
Os "modernos" estão chiando e, de fato, a bela Sabrina não combina com o Belo do Soweto. Mas, preferências musicais à parte, o que chama atenção é a reação do espectador militante da MTV, do qual os críticos contrariados são supostamente porta-vozes: sente-se desalojado do seu gueto, como se tivesse sido jogado na vala comum do gosto massificado, do qual acreditava estar imune vendo a MTV.
A ilusão é similar à dos que fazem da mostra de cinema do Cakoff, em oposição ao cinemão, um instrumento de diferenciação social e de identificação grupal. "A ralé são os outros": lema "existencialista" das tribos que animam a indústria cultural.


E-mail: fbsi@uol.com.br



Próximo Texto: Filmes e TV paga
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.