São Paulo, Domingo, 15 de Agosto de 1999
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CRÍTICA

Miss M, a candidata mascarada

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Crítico de TV

Marta Suplicy está de volta à TV. Seu "Jogo Aberto" estreou sábado passado na Bandeirantes. Um programa de debates convencional no formato, doméstico no conteúdo e sobretudo despolitizado. A tal ponto, e de maneira tão postiça, que logo se percebe seu verdadeiro e único propósito: funcionar como vitrine "neutra" para a política Marta Suplicy.
"Jogo Aberto" é tão "casual" como seria um programa de TV com Paulo Maluf apresentando carros importados, uma de suas taras prediletas. Ou outro, com ACM, em trajes de quituteira baiana, apresentando as delícias da cozinha regional. Antes de falar, pois, desse novo programa, qualquer análise que não se queira ingênua precisa enfrentar o óbvio: Marta Suplicy é candidatíssima à Prefeitura de São Paulo. Fala e se comporta como tal; vem aparecendo em primeiro lugar nas pesquisas de opinião pública.
A campanha eleitoral ainda não começou, e Marta pode aparecer onde bem entender. Não comete com isso nenhuma ilegalidade. Pergunta-se, porém, se sua atitude não pode ser considerada oportunista, ou condenável.
É uma boa questão para o grupo TVer, criado, entre outros intelectuais, pela própria Marta, com a finalidade de discutir a ética na TV. Ótima questão também para o PT, em cuja pauta de preocupações sempre estiveram presentes os usos e abusos dos meios de comunicação de massa no país.
A promiscuidade entre a política e os meios de comunicação é um dos entraves à democracia no Brasil. Ela assume várias formas. Algumas, gravíssimas: a maior televisão da Bahia pertence à família do presidente do Senado; as famílias de dois ex-presidentes, Sarney e Collor, têm o domínio da TV em seus respectivos Estados. São marcas do patrimonialismo brasileiro, sinais do atraso do país que a TV reforça e atualiza, evidências, enfim, do que impede o Brasil de ser uma República de fato, para além do papel.
Afora isso, mesmo em escala mais acanhada, o trânsito entre os meios de comunicação e a política sempre serviu ao populismo de índole conservadora. Exemplos? Ratinho, ex-deputado federal pelo PRN de Collor, começou no rádio, antes de estourar na TV. Conte Lopes, Afanásio Jazadji, Celso Russomano, João Leite Netto -para citar exemplos paulistanos do que há de mais obscurantista na representação política brasileira- são crias do rádio e da TV.
Marta Suplicy não está, portanto, em boa companhia. Mas seria tremenda injustiça associá-la sem mais a essas tristes figuras. Sua trajetória é outra, embora também tenha sido feita da TV para a política. Foi o "TV Mulher", extinto há 15 anos, que a notabilizou. Num quadro memorável, pelo que tinha de inovador e corajoso, a então sexóloga explicava, com muito didatismo e sem eufemismos, onde se localizava o clitóris, chamando atenção para as possibilidades revolucionárias do órgão para o orgasmo da mulher.
Estávamos no início dos anos 80, e o feminismo, em rota declinante no mundo e já plenamente assimilado pelo mercado, readquiria um fôlego inesperado na TV brasileira, funcionando como serviço de utilidade pública num país de gente pobre e ignorante.
A Marta Suplicy que reaparece hoje na tela não é mais a sexóloga, mas a candidata. Deve comunicar, mais do que esclarecer; precisa agradar, mais do que dizer verdades. Mais do que serviços públicos, presta favores a si mesma.
O elenco de convidados de seu primeiro programa, cujo tema era "a família", ou "o papel paterno", parecia uma reedição da sociedade civil nos anos 70, ou, melhor, da aliança de "A a Z" (a maioria gelatinosa) de que tanto se gabou até há pouco Fernando Henrique Cardoso. Eram mais de 20 pessoas, o que inviabiliza de saída qualquer debate sério, a despeito de eventuais boas intenções.
Um saco de gatos, cujo centro de gravidade, ou único elo possível, era a própria Marta, a voz do consenso paulistano -nossa Miss M, a candidata mascarada, travestida de apresentadora.
Difícil não perceber na escolha dos convidados uma jogada eleitoral sob a aparência de casualidade. De Adib Jatene ao padre Júlio Lancellotti, de Jorge Cunha Lima a Mara Maravilha, dos psicanalistas Luiz Tenório Lima e Ana Verônica Mautner a Leão Lobo, dos filhos bastardos de Pelé e de Roberto Carlos aos filhos de Jair Rodrigues e de Renato Borghi -é como se a opinião pública tivesse encarnado ali.
Seria menos grave se houvesse algum debate. Mas "Jogo Aberto" é apenas uma versão menos primitiva do "Programa Silvia Poppovic", essa aberração do falatório inútil, em que a aparência de discussão serve para fazer zunido, preencher o silêncio com frases de impacto, criar fragmentos de sentido e obter ao final um efeito de comunhão afetiva e identificação com o telespectador.
No programa de ontem, "Jogo Aberto" deve ter abordado "o esoterismo". Tarólogos, a astróloga Leiloca (ex-Frenéticas) e outras "miniaturas de sábios que aterrorizam sua clientela diante de bolas de cristal" (a definição é de Adorno) devem ter ocupado o vídeo. É muito sintomático que Marta Suplicy tenha embarcado nesse jogo. Não deixa de ser apropriado para dias de eclipse, em que andaram anunciando até o fim do mundo. Eu prefiro falar em fim da política e em eclipse da razão.


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