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CRÍTICA
Miss M, a candidata mascarada
FERNANDO DE BARROS E SILVA
Crítico de TV
Marta Suplicy está de volta à
TV. Seu "Jogo Aberto" estreou sábado passado na Bandeirantes.
Um programa de debates convencional no formato, doméstico
no conteúdo e sobretudo despolitizado. A tal ponto, e de maneira
tão postiça, que logo se percebe
seu verdadeiro e único propósito:
funcionar como vitrine "neutra"
para a política Marta Suplicy.
"Jogo Aberto" é tão "casual" como seria um programa de TV
com Paulo Maluf apresentando
carros importados, uma de suas
taras prediletas. Ou outro, com
ACM, em trajes de quituteira
baiana, apresentando as delícias
da cozinha regional. Antes de falar, pois, desse novo programa,
qualquer análise que não se queira ingênua precisa enfrentar o óbvio: Marta Suplicy é candidatíssima à Prefeitura de São Paulo. Fala
e se comporta como tal; vem aparecendo em primeiro lugar nas
pesquisas de opinião pública.
A campanha eleitoral ainda não
começou, e Marta pode aparecer
onde bem entender. Não comete
com isso nenhuma ilegalidade.
Pergunta-se, porém, se sua atitude não pode ser considerada
oportunista, ou condenável.
É uma boa questão para o grupo
TVer, criado, entre outros intelectuais, pela própria Marta, com a
finalidade de discutir a ética na
TV. Ótima questão também para
o PT, em cuja pauta de preocupações sempre estiveram presentes
os usos e abusos dos meios de comunicação de massa no país.
A promiscuidade entre a política e os meios de comunicação é
um dos entraves à democracia no
Brasil. Ela assume várias formas.
Algumas, gravíssimas: a maior televisão da Bahia pertence à família do presidente do Senado; as famílias de dois ex-presidentes, Sarney e Collor, têm o domínio da
TV em seus respectivos Estados.
São marcas do patrimonialismo
brasileiro, sinais do atraso do país
que a TV reforça e atualiza, evidências, enfim, do que impede o
Brasil de ser uma República de fato, para além do papel.
Afora isso, mesmo em escala
mais acanhada, o trânsito entre os
meios de comunicação e a política
sempre serviu ao populismo de
índole conservadora. Exemplos?
Ratinho, ex-deputado federal pelo PRN de Collor, começou no rádio, antes de estourar na TV. Conte Lopes, Afanásio Jazadji, Celso
Russomano, João Leite Netto
-para citar exemplos paulistanos do que há de mais obscurantista na representação política
brasileira- são crias do rádio e
da TV.
Marta Suplicy não está, portanto, em boa companhia. Mas seria
tremenda injustiça associá-la sem
mais a essas tristes figuras. Sua
trajetória é outra, embora também tenha sido feita da TV para a
política. Foi o "TV Mulher", extinto há 15 anos, que a notabilizou. Num quadro memorável,
pelo que tinha de inovador e corajoso, a então sexóloga explicava,
com muito didatismo e sem eufemismos, onde se localizava o clitóris, chamando atenção para as
possibilidades revolucionárias do
órgão para o orgasmo da mulher.
Estávamos no início dos anos
80, e o feminismo, em rota declinante no mundo e já plenamente
assimilado pelo mercado, readquiria um fôlego inesperado na
TV brasileira, funcionando como
serviço de utilidade pública num
país de gente pobre e ignorante.
A Marta Suplicy que reaparece
hoje na tela não é mais a sexóloga,
mas a candidata. Deve comunicar, mais do que esclarecer; precisa agradar, mais do que dizer verdades. Mais do que serviços públicos, presta favores a si mesma.
O elenco de convidados de seu
primeiro programa, cujo tema era
"a família", ou "o papel paterno",
parecia uma reedição da sociedade civil nos anos 70, ou, melhor,
da aliança de "A a Z" (a maioria
gelatinosa) de que tanto se gabou
até há pouco Fernando Henrique
Cardoso. Eram mais de 20 pessoas, o que inviabiliza de saída
qualquer debate sério, a despeito
de eventuais boas intenções.
Um saco de gatos, cujo centro
de gravidade, ou único elo possível, era a própria Marta, a voz do
consenso paulistano -nossa
Miss M, a candidata mascarada,
travestida de apresentadora.
Difícil não perceber na escolha
dos convidados uma jogada eleitoral sob a aparência de casualidade. De Adib Jatene ao padre Júlio Lancellotti, de Jorge Cunha Lima a Mara Maravilha, dos psicanalistas Luiz Tenório Lima e Ana
Verônica Mautner a Leão Lobo,
dos filhos bastardos de Pelé e de
Roberto Carlos aos filhos de Jair
Rodrigues e de Renato Borghi -é
como se a opinião pública tivesse
encarnado ali.
Seria menos grave se houvesse
algum debate. Mas "Jogo Aberto"
é apenas uma versão menos primitiva do "Programa Silvia Poppovic", essa aberração do falatório inútil, em que a aparência de
discussão serve para fazer zunido,
preencher o silêncio com frases
de impacto, criar fragmentos de
sentido e obter ao final um efeito
de comunhão afetiva e identificação com o telespectador.
No programa de ontem, "Jogo
Aberto" deve ter abordado "o
esoterismo". Tarólogos, a astróloga Leiloca (ex-Frenéticas) e outras
"miniaturas de sábios que aterrorizam sua clientela diante de bolas
de cristal" (a definição é de Adorno) devem ter ocupado o vídeo. É
muito sintomático que Marta Suplicy tenha embarcado nesse jogo. Não deixa de ser apropriado
para dias de eclipse, em que andaram anunciando até o fim do
mundo. Eu prefiro falar em fim da
política e em eclipse da razão.
E-mail: fbsi@uol.com.br
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