São Paulo, domingo, 16 de abril de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CRÍTICA

O tal do "target"

Esther Hamburger

MÃE emperiquitada, dona-de-casa ingênua, alimenta sua filha espevitada. Legendas na parte de baixo do quadro traduzem a gíria usada pela moça para o idioma compreendido pela mãe. O desencontro de repertórios é engraçado: "Estou esperando um filé", "mas minha filha, há tanta comida em casa!". O esquete integrou o primeiro episódio de "Garotas do Programa", versão feminina do "Casseta & Planeta, Urgente!", parte do pacote de novos programas da Rede Globo.
"Garotas do Programa" é irregular. Tem boas interpretações em um estilo teatral, com figurinos exagerados que ajudam a compor personagens hiperestereotipados. A linguagem é de videoclipe colorido. O ritmo é ágil e desprendido. Mas o tal do "target" fala mais alto do que qualquer outra idéia no programa. É o público-alvo, o grupo de espectadores que os que produzem o programa imaginam como público ideal que está lá em exibição: mulheres, donas-de-casa, mães, profissionais, estudantes, filhas, esposas, namoradas, comadres, amigas, empregadas, peruas, mulheres.
A proeminência de objetivos definidos em termos de "target" sobre as idéias é uma marca comum a programas da nova safra. O "target" é o grupo de espectadores que as emissoras definem como o público-alvo, o grupo demográfico que um programa pretende atingir. Os termos que compõem esse jargão mercadológico são bélicos.
Eles indicam o espírito de busca "desesperada" para citar o termo proposto por Ien Ang, estudiosa holandesa, para definir a postura das emissoras em relação aos espectadores em situações de mercado.
Os índices de audiência são medidos de acordo com o sexo, a idade, a classe social e a praça. Com bases nessas variáveis as emissoras planejam seus programas. Não se trata de pôr idéias no ar, trata-se de inventar programas capazes de captar o interesse de um grupo que supostamente compartilha determinadas preferências, mas na verdade não existe -a não ser na imaginação do produtor. Como as emissoras subestimam a capacidade dos diversos segmentos do público, o resultado é paupérrimo.
Aos sábados à tarde a Rede Globo estreou o "Caldeirão do Huck", exibindo um dos astros recém-contratados no afã de esvaziar a concorrência. No programa de Luciano Huck o "target" se ampliou. O programa visa atingir os adolescentes, mas também suas famílias, então vem em tons menos polêmicos. O que era picante e chamou a atenção pela conotação apelativa convencional no "H" agora ganha um ar implícito. A intenção de sugerir calor explosivo está expressa no título, no jeitão do apresentador, no cenário e nos painéis eletrônicos, inundados por bolhas coloridas, e só.
O programa é bem-comportado e joga com recursos primários, pouco desafiadores, elementos que provavelmente compõem o repertório que se imagina que a família de classe média goste. "Caldeirão" oferece a chance de participar em família e entre colegas de escola em troca de prêmios. Há um toque social na competição entre escolas por dinheiro para equipamento. Há um pouco de filantropia eletrônica na busca de talentos anônimos no interior do Brasil e na oferta de experiências inusitadas.
O menino que é craque no "sand board" no Rio Grande do Norte tem a chance de conhecer Huck, de aparecer na TV e de viajar com o apresentador para Aspen (nos EUA), onde tem seu talento reconhecido por um técnico de esportes de inverno. Emocionado, o garoto brasileiro transmite suas primeiras impressões da neve.
Mas o oportunismo das iniciativas de intervenção social do programa é descarado. Que estímulo intelectual para os alunos que disputam recursos para suas escolas pode se esconder na tarefa de conseguir uma cueca autografada por um jogador de futebol profissional? Que chance nova concreta sobrou ao menino do "sand board" após seus 15 minutos de fama?
Que jogo de convivência e autoconhecimento pode oferecer uma competição entre famílias em que os filhos se visitam para captar elementos da intimidade alheia, como o nome da cachorra de uma família ou o ponto turístico exibido na decoração do quarto do casal da outra?
A competição na TV aberta se acirra, e a programação das emissoras, no geral, piora. Triste paradoxo -o espectador em vez de sair ganhando com a disputa pelos índices de audiência é brindado com programas que pressupõem e subestimam a sua inteligência, reduzida a "targets" sociológicos definidos com base em pesquisas restritas: a família, o jovem, a mulher.
As ortodoxias do marketing, há muito consolidadas no fazer televisivo, enrijecem os programas e engolfam produtores e espectadores em um panorama que deixa muito a desejar. É claro que pesquisas aferem muitas coisas e podem ser muito sugestivas, mas elas não respondem pelo que não se pergunta. Amarrar programações a concepções limitadas e predefinidas do público limita a criatividade de quem faz e de quem vê. E contribui para uma sensação de mesmice.
Para voltar à cena do "Garota de Programa", é bom lembrar que nem sempre a comunicação acontece como se previa, ou como aparece. E, longe da perfeição da mira dos instrumentos de combate eletrônico, muitas vezes é no mal-entendido que reside o segredo.


E-mail: ehamb@uol.com.br



Texto Anterior: Astrologia - Barbara Abramo: Um domingo inspirado
Próximo Texto: Filmes de hoje
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.