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CRÍTICA
O tal do "target"
Esther Hamburger
MÃE emperiquitada, dona-de-casa ingênua, alimenta sua filha espevitada. Legendas na parte
de baixo do quadro traduzem a gíria usada pela moça para o idioma compreendido pela
mãe. O desencontro de repertórios é engraçado: "Estou esperando um filé", "mas minha filha, há tanta comida em
casa!". O esquete integrou o primeiro episódio de "Garotas
do Programa", versão feminina do "Casseta & Planeta, Urgente!", parte do pacote de novos programas da Rede Globo.
"Garotas do Programa" é irregular. Tem boas interpretações em um estilo teatral, com figurinos exagerados que
ajudam a compor personagens hiperestereotipados. A linguagem é de videoclipe colorido. O ritmo é ágil e desprendido. Mas o tal do "target" fala mais alto do que qualquer
outra idéia no programa. É o público-alvo, o grupo de espectadores que os que
produzem o programa imaginam como
público ideal que está lá em exibição:
mulheres, donas-de-casa, mães, profissionais, estudantes, filhas, esposas, namoradas, comadres, amigas, empregadas, peruas, mulheres.
A proeminência de objetivos definidos
em termos de "target" sobre as idéias é
uma marca comum a programas da nova safra. O "target" é o grupo de espectadores que as emissoras definem como o
público-alvo, o grupo demográfico que
um programa pretende atingir. Os termos que compõem esse jargão mercadológico são bélicos.
Eles indicam o espírito de busca "desesperada" para citar o termo proposto
por Ien Ang, estudiosa holandesa, para
definir a postura das emissoras em relação aos espectadores em situações de mercado.
Os índices de audiência são medidos de acordo com o sexo, a idade, a classe social e a praça. Com bases nessas variáveis as emissoras planejam seus programas. Não se trata
de pôr idéias no ar, trata-se de inventar programas capazes
de captar o interesse de um grupo que supostamente compartilha determinadas preferências, mas na verdade não
existe -a não ser na imaginação do produtor. Como as
emissoras subestimam a capacidade dos diversos segmentos do público, o resultado é paupérrimo.
Aos sábados à tarde a Rede Globo estreou o "Caldeirão
do Huck", exibindo um dos astros recém-contratados no
afã de esvaziar a concorrência. No programa de Luciano
Huck o "target" se ampliou. O programa visa atingir os
adolescentes, mas também suas famílias, então vem em
tons menos polêmicos. O que era picante e chamou a atenção pela conotação apelativa convencional no "H" agora
ganha um ar implícito. A intenção de sugerir calor explosivo está expressa no título, no jeitão do apresentador, no cenário e nos painéis eletrônicos, inundados por bolhas coloridas, e só.
O programa é bem-comportado e joga com recursos primários, pouco desafiadores, elementos que provavelmente
compõem o repertório que se imagina que a família de
classe média goste. "Caldeirão" oferece a chance de participar em família e entre colegas de escola em troca de prêmios. Há um toque social na competição entre escolas por
dinheiro para equipamento. Há um pouco de filantropia
eletrônica na busca de talentos anônimos no interior do
Brasil e na oferta de experiências inusitadas.
O menino que é craque no "sand board" no Rio Grande
do Norte tem a chance de conhecer Huck, de aparecer na
TV e de viajar com o apresentador para Aspen (nos EUA),
onde tem seu talento reconhecido por um técnico de esportes de inverno. Emocionado, o garoto brasileiro transmite suas primeiras impressões da neve.
Mas o oportunismo das iniciativas de
intervenção social do programa é descarado. Que estímulo intelectual para os
alunos que disputam recursos para suas
escolas pode se esconder na tarefa de
conseguir uma cueca autografada por
um jogador de futebol profissional? Que
chance nova concreta sobrou ao menino
do "sand board" após seus 15 minutos de
fama?
Que jogo de convivência e autoconhecimento pode oferecer uma competição
entre famílias em que os filhos se visitam
para captar elementos da intimidade
alheia, como o nome da cachorra de uma
família ou o ponto turístico exibido na
decoração do quarto do casal da outra?
A competição na TV aberta se acirra, e
a programação das emissoras, no geral,
piora. Triste paradoxo -o espectador
em vez de sair ganhando com a disputa pelos índices de audiência é brindado com programas que pressupõem e subestimam a sua inteligência, reduzida a "targets" sociológicos definidos com base em pesquisas restritas: a família, o
jovem, a mulher.
As ortodoxias do marketing, há muito consolidadas no
fazer televisivo, enrijecem os programas e engolfam produtores e espectadores em um panorama que deixa muito
a desejar. É claro que pesquisas aferem muitas coisas e podem ser muito sugestivas, mas elas não respondem pelo
que não se pergunta. Amarrar programações a concepções
limitadas e predefinidas do público limita a criatividade de
quem faz e de quem vê. E contribui para uma sensação de
mesmice.
Para voltar à cena do "Garota de Programa", é bom lembrar que nem sempre a comunicação acontece como se
previa, ou como aparece. E, longe da perfeição da mira dos
instrumentos de combate eletrônico, muitas vezes é no
mal-entendido que reside o segredo.
E-mail: ehamb@uol.com.br
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