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CRÍTICA
Máquina de fazer doidos
HÉLIO SCHWARTSMAN
O TERMO "máquina de fazer doidos" frequentemente atribuído à TV ganhou inesperada concretude com a cobertura das eleições norte-americanas. As grandes redes prometeram divulgar o nome do próximo presidente dos EUA poucas
horas depois do fechamento das urnas; em vez disso, o
que se verificou foi um festival de desinformação. Com
base no que via na TV, Al Gore, depois de ter achado que
levaria o cargo mais importante do planeta, chegou a telefonar para George W. Bush para cumprimentá-lo pela
"vitória". Desfeito o equívoco, ligou de
novo para "descumprimentar".
Em parte isso se deveu a um complexo
encadeamento de erros jornalísticos, alguns primários, como a formação do
"pool" nacional que contava com uma
única fonte de informação. Mas talvez
haja também um problema de objetividade intrínseco à TV.
A TV não goza de boa reputação entre
os filósofos. Para Paul Virilio, ela é um
museu dos acidentes; pode apenas destruir. Jean Baudrillard não a vê com
olhos mais benignos. Para ele, a TV, ao
romper as fronteiras de espaço e tempo,
cria seu próprio espaço-tempo, aniquilando a realidade para gerar uma nova,
sua. É nesse sentido que Baudrillard pôde afirmar que a Guerra do Golfo nunca
aconteceu "de verdade".
Nossa primeira reação é a de achar que
há exagero. Uma abordagem mais "pé
no chão" sugere que a TV é uma tecnologia, e tecnologias
são, em princípio, neutras. Criticar a TV pelo uso que a
sociedade lhe dá faz tanto sentido quanto criticar o papel
porque abrigou as idéias de Hitler em "Mein Kampf".
Seria forçoso reconhecer que a expressão "a TV", nesse
contexto, opera como uma sinédoque, ou seja, toma o todo pela parte. Eu explico. A TV é múltipla. Se ela exibe um
filme de Bergman, já não falamos de TV, mas de cinema.
É claro que os cinéfilos não concordariam com isso. Ainda assim, até prova em contrário, Hitchcock é Hitchcock
na telinha ou na telona, sob pena de fundarmos, sem querer, uma nova ontologia. Até o jornalismo, que se quer a
corporificação da objetividade, muda. Por um instante
depois do desastre da cobertura eleitoral, ele deixou de
ser um relato dos fatos para tornar-se, na mesma TV, objeto de sua própria crítica.
Não posso pretender ensinar o padre a fazer a homilia.
Embora eu não seja um entusiasta da filosofia de Virilio,
Baudrillard e outros dessa turma, é preciso reconhecer-lhes o preparo intelectual. Se insistem na possibilidade de
criticar a TV sem maiores especificações, estão falando de
uma outra coisa. É preciso analisar então a possibilidade
de a expressão "a TV" não funcionar como uma sinédoque, mas como uma metonímia, a parte pelo todo, e não
mais o todo pela parte. Aqui, o objeto não seria mais a tecnologia nem cada programa em especial. O termo "a TV"
seria uma forma abreviada de designar as relações sociais
que cercam o fenômeno TV.
Se a tecnologia pode, num determinado nível de análise, ser neutra, quando transformada numa mercadoria
deixa de sê-lo. E a TV é uma mercadoria, fruto de um
emaranhado de relações econômicas e sociais, que tende
a preservar o essencial do "statu quo" que a engendra.
Mais do que isso, tem a capacidade de alterar nossa percepção da realidade e determinar nossos comportamentos. Fá-lo numa velocidade estonteante, em "tempo
real", um conceito que ela desenvolveu e nos ensinou a exigir. Cada um
desses fenômenos magnifica e dá sentido ao outro, gerando novos significados ou, como quer Baudrillard, novas realidades que anulam a que as
precede. No caso americano, a TV ia
produzindo, num intervalo de minutos, novas realidades que se sobrepunham à anterior.
Não creio que faça muito sentido
procurar dolo nesse processo. Foi um
erro magnificamente trivial, só que
em tempo real e cadeia mundial. Ele
torna a expressão "museu de acidentes" de Virilio particularmente feliz.
Ainda não estou convencido de que
devamos aceitar sem discussão a tese
de que a TV tem um caráter necessariamente destruidor. Ela, em sua multiplicidade, também
conserva e expõe contradições. Pode fazer sua própria
crítica e eventualmente até levar ao ar uma entrevista com
Baudrillard ou Virilio. Não é absurdo ver aí destruição em
certo sentido criadora. Se é uma "máquina de fazer doidos", é porque de algum modo já éramos doidos antes.
A investida da Justiça sobre a novela da Globo dá o que
pensar. Um juiz determinou que "Laços de Família" mudasse de horário e que todos os personagens menores de
18 anos "desaparecessem" do enredo. É um belo desafio à
capacidade criadora do autor, mas é também um caso
grotesco de censura, que por sinal é proibida pelos artigos
5º (IX) e 220 da Constituição. Mas esse é um detalhe.
O juiz, para ser consequente, deveria também cassar o
pátrio poder daqueles que permitiram que seus filhos
participassem de tão libidinosa novela. Não resta dúvida
de que essas crianças estariam melhor sob a guarda do
Estado, numa Febem qualquer.
Como se vê, não é exclusividade da TV destruir realidades para substituí-las por outras, inteiramente subjetivas.
Eu e o Judiciário também somos capazes de fazê-lo.
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