São Paulo, domingo, 19 de novembro de 2000

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CRÍTICA
Máquina de fazer doidos

HÉLIO SCHWARTSMAN

O TERMO "máquina de fazer doidos" frequentemente atribuído à TV ganhou inesperada concretude com a cobertura das eleições norte-americanas. As grandes redes prometeram divulgar o nome do próximo presidente dos EUA poucas horas depois do fechamento das urnas; em vez disso, o que se verificou foi um festival de desinformação. Com base no que via na TV, Al Gore, depois de ter achado que levaria o cargo mais importante do planeta, chegou a telefonar para George W. Bush para cumprimentá-lo pela "vitória". Desfeito o equívoco, ligou de novo para "descumprimentar". Em parte isso se deveu a um complexo encadeamento de erros jornalísticos, alguns primários, como a formação do "pool" nacional que contava com uma única fonte de informação. Mas talvez haja também um problema de objetividade intrínseco à TV. A TV não goza de boa reputação entre os filósofos. Para Paul Virilio, ela é um museu dos acidentes; pode apenas destruir. Jean Baudrillard não a vê com olhos mais benignos. Para ele, a TV, ao romper as fronteiras de espaço e tempo, cria seu próprio espaço-tempo, aniquilando a realidade para gerar uma nova, sua. É nesse sentido que Baudrillard pôde afirmar que a Guerra do Golfo nunca aconteceu "de verdade". Nossa primeira reação é a de achar que há exagero. Uma abordagem mais "pé no chão" sugere que a TV é uma tecnologia, e tecnologias são, em princípio, neutras. Criticar a TV pelo uso que a sociedade lhe dá faz tanto sentido quanto criticar o papel porque abrigou as idéias de Hitler em "Mein Kampf". Seria forçoso reconhecer que a expressão "a TV", nesse contexto, opera como uma sinédoque, ou seja, toma o todo pela parte. Eu explico. A TV é múltipla. Se ela exibe um filme de Bergman, já não falamos de TV, mas de cinema. É claro que os cinéfilos não concordariam com isso. Ainda assim, até prova em contrário, Hitchcock é Hitchcock na telinha ou na telona, sob pena de fundarmos, sem querer, uma nova ontologia. Até o jornalismo, que se quer a corporificação da objetividade, muda. Por um instante depois do desastre da cobertura eleitoral, ele deixou de ser um relato dos fatos para tornar-se, na mesma TV, objeto de sua própria crítica. Não posso pretender ensinar o padre a fazer a homilia. Embora eu não seja um entusiasta da filosofia de Virilio, Baudrillard e outros dessa turma, é preciso reconhecer-lhes o preparo intelectual. Se insistem na possibilidade de criticar a TV sem maiores especificações, estão falando de uma outra coisa. É preciso analisar então a possibilidade de a expressão "a TV" não funcionar como uma sinédoque, mas como uma metonímia, a parte pelo todo, e não mais o todo pela parte. Aqui, o objeto não seria mais a tecnologia nem cada programa em especial. O termo "a TV" seria uma forma abreviada de designar as relações sociais que cercam o fenômeno TV. Se a tecnologia pode, num determinado nível de análise, ser neutra, quando transformada numa mercadoria deixa de sê-lo. E a TV é uma mercadoria, fruto de um emaranhado de relações econômicas e sociais, que tende a preservar o essencial do "statu quo" que a engendra. Mais do que isso, tem a capacidade de alterar nossa percepção da realidade e determinar nossos comportamentos. Fá-lo numa velocidade estonteante, em "tempo real", um conceito que ela desenvolveu e nos ensinou a exigir. Cada um desses fenômenos magnifica e dá sentido ao outro, gerando novos significados ou, como quer Baudrillard, novas realidades que anulam a que as precede. No caso americano, a TV ia produzindo, num intervalo de minutos, novas realidades que se sobrepunham à anterior. Não creio que faça muito sentido procurar dolo nesse processo. Foi um erro magnificamente trivial, só que em tempo real e cadeia mundial. Ele torna a expressão "museu de acidentes" de Virilio particularmente feliz. Ainda não estou convencido de que devamos aceitar sem discussão a tese de que a TV tem um caráter necessariamente destruidor. Ela, em sua multiplicidade, também conserva e expõe contradições. Pode fazer sua própria crítica e eventualmente até levar ao ar uma entrevista com Baudrillard ou Virilio. Não é absurdo ver aí destruição em certo sentido criadora. Se é uma "máquina de fazer doidos", é porque de algum modo já éramos doidos antes.
A investida da Justiça sobre a novela da Globo dá o que pensar. Um juiz determinou que "Laços de Família" mudasse de horário e que todos os personagens menores de 18 anos "desaparecessem" do enredo. É um belo desafio à capacidade criadora do autor, mas é também um caso grotesco de censura, que por sinal é proibida pelos artigos 5º (IX) e 220 da Constituição. Mas esse é um detalhe.
O juiz, para ser consequente, deveria também cassar o pátrio poder daqueles que permitiram que seus filhos participassem de tão libidinosa novela. Não resta dúvida de que essas crianças estariam melhor sob a guarda do Estado, numa Febem qualquer.
Como se vê, não é exclusividade da TV destruir realidades para substituí-las por outras, inteiramente subjetivas. Eu e o Judiciário também somos capazes de fazê-lo.



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