São Paulo, Domingo, 20 de Junho de 1999
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CRÍTICA

Mal-estar na (TV) Cultura

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião

A TV Cultura fez 30 anos na semana que passou. São "30 anos incríveis" de "um jeito diferente de ver e fazer televisão", segundo nos informam os slogans escolhidos pela emissora para festejar a data. Há de fato razões para comemorar, e algumas delas poderão ser vistas ou revistas na seleção de programas do arquivo que serão exibidos ao longo da programação até 15 de agosto.
Mas nem tudo é motivo de festa para a TV Cultura. Há um mal-estar rondando o presente da emissora, de certa forma refletido nos slogans de aniversário: "anos incríveis" é uma expressão "démodé", que remonta ao que havia de mais ingênuo ou integrado na agitação jovem dos anos 60; e o "jeito diferente de ver e fazer" não deixa de exprimir em termos afinal comerciais -ou "jovens", na linguagem publicitária de hoje- que a emissora não é igual às emissoras comerciais.
Em sentido mais rigoroso, o próprio nome -TV Cultura- já encerra algo de paradoxal: TV e cultura não falam exatamente a mesma língua; e a vocação para o entretenimento que desde a origem acompanha a primeira corresponde à necessidade de barateamento da segunda.
Mas nem é preciso ser tão sisudo, ou tomar o problema pela raiz, para identificar o mal-estar a que estamos nos referindo. O fato é que o lugar ocupado hoje pela TV Cultura é um ponto cego dentro da televisão brasileira. Como tudo que é ou pretende ser público, ela está ameaçada de obsolescência. Se o furacão privatizante não poupa áreas tão fundamentais como a educação e a saúde, não haveria porque preservar da sua voracidade mercadorias tão mais apetitosas como a TV e seus produtos.
De fato, a TV Cultura está como que emparedada entre a TV aberta e a TV por assinatura; vive, além disso, um dilema: continuar sob a tutela do Estado, incapaz de sustentá-la, ou passar a depender do mercado publicitário. Nas duas situações, trata-se de um mesmo constrangimento que ameaça a sobrevivência do que é público quando a palavra de ordem é: privatiza e consome.
Mas vamos por partes. A TV Cultura é, como se sabe, uma TV de elite. É paradoxal, mas assim como a universidade pública financia os estudos dos filhos das famílias ricas, a programação da Cultura atende a demanda de uma camada social supostamente educada, ou minimamente letrada, que pede da TV algo mais que as novelas da Globo ou a selvageria dos programas de auditório.
Esse público da Cultura, universitário, uspiano, formado pelos setores esclarecidos da classe média e da elite, é o mesmo que está sendo atendido, pelo menos em parte, pela TV por assinatura. No Brasil, ela funciona mais ou menos como um plano privado de saúde (e em muito casos é tão ruim como os planos de saúde, apesar de cobrar do consumidor, como os planos de saúde, preços exorbitantes). A imensa maioria que não pode pagá-los também nunca ligou para a TV Cultura; prefere o SUS (a Globo), ou, pior, recorre aos postos de saúde, onde encontra curandeiros eletrônicos como Ratinho, Raul Gil e Sérgio Mallandro.
Metáforas à parte, a Cultura corre o risco de ser respeitada por todos, mas de não ser defendida por ninguém. (A reação furiosa que se viu no ano passado pelos jornais à idéia de que a Cultura cobrasse uma espécie de imposto dos cidadãos mais ricos para poder se financiar sem depender da publicidade ou dos favores do Estado foi muito sintomática.) Todos, enfim, podem considerá-la uma boa TV, mas não a ponto de defender esse elo perdido que ela representa entre dois brasis que continuam se afastando, um que agora paga para ter pacotes de programas à sua disposição, outro que se basta em linha direta com o populismo e a barbárie.
O mal-estar da TV Cultura no fundo é parte do mal-estar na cultura de um país que passou das formas rústicas ou pré-letradas de cultura para essa espécie de folclore urbano pós-letrado que é a cultura televisiva sem ter experimentado os atritos da civilização.
No momento em que o país vive, além disso, um processo sem igual de americanização de suas formas de vida, sem no entanto ter resolvido o seu apartheid social, muito pelo contrário, a proposta da TV Cultura teria de ser radicalmente oposta ao brazilian way of life que vai se desenhando no horizonte.
A TV Cultura não tem que produzir entretenimento, não tem que rivalizar com a mídia nos termos da mídia, não tem que ser um canal a mais na TV aberta para competir com os canais pagos; tem que abandonar essa pretensão de ser jovem, diferente ou incrível; deve ser menos um celeiro de novos ídolos ou de programas "bacanas" a serem roubados ou copiados depois pela TV comercial e mais um espaço radicalmente voltado para reflexão e formação das pessoas; deve ser menos comprometida com a TV e mais com a cultura. Não resta muita coisa pública no país para levar adiante essa tarefa.

Dou folga aos leitores nas próximas duas semanas. Volto à coluna no dia 11 de julho. Até.


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