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CRÍTICA
Mal-estar na (TV) Cultura
FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião
A TV Cultura fez 30 anos
na semana que passou. São
"30 anos incríveis" de "um
jeito diferente de ver e fazer
televisão", segundo nos informam os slogans escolhidos pela emissora para festejar a data. Há de fato razões para comemorar, e algumas delas poderão ser
vistas ou revistas na seleção de programas do arquivo que serão exibidos
ao longo da programação
até 15 de agosto.
Mas nem tudo é motivo
de festa para a TV Cultura.
Há um mal-estar rondando o presente da emissora,
de certa forma refletido
nos slogans de aniversário:
"anos incríveis" é uma expressão "démodé", que remonta ao que havia de
mais ingênuo ou integrado
na agitação jovem dos anos
60; e o "jeito diferente de
ver e fazer" não deixa de
exprimir em termos afinal
comerciais -ou "jovens",
na linguagem publicitária
de hoje- que a emissora
não é igual às emissoras comerciais.
Em sentido mais rigoroso, o próprio nome -TV
Cultura- já encerra algo
de paradoxal: TV e cultura
não falam exatamente a
mesma língua; e a vocação
para o entretenimento que
desde a origem acompanha a primeira corresponde à necessidade de barateamento da segunda.
Mas nem é preciso ser tão
sisudo, ou tomar o problema pela raiz, para identificar o mal-estar a que estamos nos referindo. O fato é
que o lugar ocupado hoje
pela TV Cultura é um ponto cego dentro da televisão
brasileira. Como tudo que
é ou pretende ser público,
ela está ameaçada de obsolescência. Se o furacão privatizante não poupa áreas
tão fundamentais como a
educação e a saúde, não haveria porque preservar da
sua voracidade mercadorias tão mais apetitosas como a TV e seus produtos.
De fato, a TV Cultura está
como que emparedada entre a TV aberta e a TV por
assinatura; vive, além disso, um dilema: continuar
sob a tutela do Estado, incapaz de sustentá-la, ou
passar a depender do mercado publicitário. Nas duas
situações, trata-se de um
mesmo constrangimento
que ameaça a sobrevivência do que é público quando a palavra de ordem é:
privatiza e consome.
Mas vamos por partes. A
TV Cultura é, como se sabe, uma TV de elite. É paradoxal, mas assim como a
universidade pública financia os estudos dos filhos das famílias ricas, a
programação da Cultura
atende a demanda de uma
camada social supostamente educada, ou minimamente letrada, que pede
da TV algo mais que as novelas da Globo ou a selvageria dos programas de auditório.
Esse público da Cultura,
universitário, uspiano, formado pelos setores esclarecidos da classe média e da
elite, é o mesmo que está
sendo atendido, pelo menos em parte, pela TV por
assinatura. No Brasil, ela
funciona mais ou menos
como um plano privado de
saúde (e em muito casos é
tão ruim como os planos
de saúde, apesar de cobrar
do consumidor, como os
planos de saúde, preços
exorbitantes). A imensa
maioria que não pode pagá-los também nunca ligou
para a TV Cultura; prefere
o SUS (a Globo), ou, pior,
recorre aos postos de saúde, onde encontra curandeiros eletrônicos como
Ratinho, Raul Gil e Sérgio
Mallandro.
Metáforas à parte, a Cultura corre o risco de ser
respeitada por todos, mas
de não ser defendida por
ninguém. (A reação furiosa
que se viu no ano passado
pelos jornais à idéia de que
a Cultura cobrasse uma espécie de imposto dos cidadãos mais ricos para poder
se financiar sem depender
da publicidade ou dos favores do Estado foi muito
sintomática.) Todos, enfim, podem considerá-la
uma boa TV, mas não a
ponto de defender esse elo
perdido que ela representa
entre dois brasis que continuam se afastando, um que
agora paga para ter pacotes
de programas à sua disposição, outro que se basta
em linha direta com o populismo e a barbárie.
O mal-estar da TV Cultura no fundo é parte do mal-estar na cultura de um país
que passou das formas rústicas ou pré-letradas de
cultura para essa espécie de
folclore urbano pós-letrado que é a cultura televisiva
sem ter experimentado os
atritos da civilização.
No momento em que o
país vive, além disso, um
processo sem igual de americanização de suas formas
de vida, sem no entanto ter
resolvido o seu apartheid
social, muito pelo contrário, a proposta da TV Cultura teria de ser radicalmente oposta ao brazilian
way of life que vai se desenhando no horizonte.
A TV Cultura não tem
que produzir entretenimento, não tem que rivalizar com a mídia nos termos da mídia, não tem que
ser um canal a mais na TV
aberta para competir com
os canais pagos; tem que
abandonar essa pretensão
de ser jovem, diferente ou
incrível; deve ser menos
um celeiro de novos ídolos
ou de programas "bacanas" a serem roubados ou
copiados depois pela TV
comercial e mais um espaço radicalmente voltado
para reflexão e formação
das pessoas; deve ser menos comprometida com a
TV e mais com a cultura.
Não resta muita coisa pública no país para levar
adiante essa tarefa.
Dou folga aos leitores nas
próximas duas semanas.
Volto à coluna no dia 11 de
julho. Até.
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