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CRÍTICA
TV e ética: qualidade como ideologia
FERNANDO DE BARROS E SILVA
Crítico de TV
"Fala-se muito no Brasil dos anos 90
em ética e política, como se houvesse
um Aristóteles em cada esquina"
(Gilberto Felisberto Vasconcellos,
in "Collor: Cocaína dos Pobres")
Só se fala em "ética" e "qualidade" na TV. Desde que o secretário
José Gregori se rebelou contra a
"baixaria" (na verdade meio a reboque, pegando carona num mal-estar que identificou nas ruas),
convocando as emissoras a fazer
os seus próprios "códigos de conduta", vem tomando corpo uma
verdadeira cruzada moralizante
em nome dessas duas palavrinhas
edificantes -ética e qualidade.
Parece hoje haver não um Aristóteles, mas um Rousseau em cada esquina, como a repetir: a TV é
essencialmente boa, mas está degenerada. É uma variante do mito
do "bom selvagem" de Rousseau
(o homem é essencialmente bom,
mas está corrompido pela sociedade e pelos costumes).
Essa idéia, presente de forma tácita no "Roda Viva" que discutiu
a TV na semana retrasada, de maneira aliás muito frustrante, reapareceu de forma escancarada
durante o Encontro Latino-Americano sobre TV de Qualidade,
promovido este mês em São Paulo pelo Sesc e o Instituto Goethe.
Reproduzo o que disse no evento o palestrante Arlindo Machado, professor da USP e da PUC-SP, conhecido pesquisador da mídia, citado e endossado pelo jornalista Gabriel Priolli em sua coluna semanal sobre TV na "Gazeta Mercantil" do último dia 13.
Tanto o que diz o professor Machado quanto o que subscreve
Priolli parecem-me ser uma espécie de súmula da "ideologia da
qualidade" em curso no país.
"Sempre que falamos de televisão, falamos de má televisão. Por
que não viramos a câmera para o
outro lado, o da boa televisão, que
sempre existiu?", pergunta Machado. Ao que Priolli acrescenta:
"Se os "modelos degenerados" de
TV, no dizer de Arlindo Machado, nos intranquilizam e nos revoltam, comecemos, pois, a valorizar o que de bom existe no veículo (...) Não somos o pior país do
mundo, e nossa televisão não é,
apenas, o lodaçal que respinga de
Ratinhos e quejandos". De onde,
conclui o jornalista, é preciso reconhecer na TV "seu papel positivo no fortalecimento de uma
identidade nacional (ou várias,
convergentes), na coesão do povo
brasileiro, na preservação da nossa língua, valores e costumes".
O padrão Globo de qualidade
não teria melhores defensores.
Ratinho aparece como versão degenerada (aqui o rousseauísmo)
porque não desempenha "papel
positivo no fortalecimento de
uma identidade nacional, na coesão do povo brasileiro", isto é,
porque escapa ao padrão Globo.
Este é o ponto. A mágica da Globo foi ter criado a ilusão de um
país idealmente unificado, do
qual ela seria o espelho. O padrão
Globo, esse amálgama de dois
mundos que a transformou na
emissora que é a "cara do Brasil",
foi construído à custa da ocultação do país real. A Globo, à medida que se foi fazendo, escondeu à
sua volta uma espécie de lixo inaproveitável (tanto técnico e simbólico quanto humano e social),
que não a incomodava muito
(nem à classe média que hoje clama por ética e qualidade) enquanto esse lixo aparecia no Ibope de maneira apenas marginal.
Ocorre que o Brasil de Ratinho
ganhou visibilidade, começou a
perturbar o "país da qualidade". É
preciso então tratá-lo como um
desvio, uma aberração, uma degeneração, e não como consequência previsível de um país selvagem e cindido ao meio. Não se
trata de defender Ratinho, bem
entendido. É evidente que ele é
uma espécie de clown que se serve da barbárie; é evidente que ele
se alimenta do lixo social brasileiro; é evidente que mimetiza o
mundo de seus personagens e de
sua audiência promovendo linchamentos simbólicos no ar.
Isto posto, ocorre que Ratinho
não é pior do que a sociedade que
o engendrou. Ratinho diz tanto
sobre o Brasil atual quanto a Globo. Incomodados no entanto
com o que vêem, os setores bem-pensantes da classe média pedem
"ética" e "qualidade".
É o caso de ressuscitar um cachorro morto e dizer que estamos
diante de um caso clássico de
ideologia, desses de pendurar na
parede. Os ideólogos da pequeno-burguesia estão invocando
idéias particulares (o padrão Globo) como se fossem ideais, ou valores universais (ética, qualidade,
identidade nacional): criam, para
falar como Marx, universais abstratos, transformando suas ilusões (de classe?) em representações coletivas e universalmente
válidas. São no fundo pequenos-burgueses, porta-vozes bem-intencionados de uma miopia.
No momento em que o padrão
Globo começa a fazer água, no
momento em que a classe média
começa a se refugiar na trincheira
da TV paga, no momento em que
a TV aberta parece reproduzir e
talvez antecipar a desagregação
do país, a tarefa da crítica não é falar bem ou mal do veículo, como
diz Machado, nem aderir a campanhas por mais "ética", mas
olhar o que está acontecendo de
maneira um pouco menos complacente e rousseauísta.
Se a TV não deve "pagar sozinha a culpa pela mercantilização
da cultura", como quer Machado,
isso não desobriga aqueles que se
ocupam da TV de tirar as consequências desse processo, sob risco de atuarem como ideólogos
das "forças invisíveis do mercado" e fazer, por inocência ou má-fé, a apologia da catástrofe.
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