São Paulo, Domingo, 22 de Agosto de 1999
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CRÍTICA

TV e ética: qualidade como ideologia

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Crítico de TV

 "Fala-se muito no Brasil dos anos 90 em ética e política, como se houvesse um Aristóteles em cada esquina" (Gilberto Felisberto Vasconcellos, in "Collor: Cocaína dos Pobres")

Só se fala em "ética" e "qualidade" na TV. Desde que o secretário José Gregori se rebelou contra a "baixaria" (na verdade meio a reboque, pegando carona num mal-estar que identificou nas ruas), convocando as emissoras a fazer os seus próprios "códigos de conduta", vem tomando corpo uma verdadeira cruzada moralizante em nome dessas duas palavrinhas edificantes -ética e qualidade.
Parece hoje haver não um Aristóteles, mas um Rousseau em cada esquina, como a repetir: a TV é essencialmente boa, mas está degenerada. É uma variante do mito do "bom selvagem" de Rousseau (o homem é essencialmente bom, mas está corrompido pela sociedade e pelos costumes).
Essa idéia, presente de forma tácita no "Roda Viva" que discutiu a TV na semana retrasada, de maneira aliás muito frustrante, reapareceu de forma escancarada durante o Encontro Latino-Americano sobre TV de Qualidade, promovido este mês em São Paulo pelo Sesc e o Instituto Goethe.
Reproduzo o que disse no evento o palestrante Arlindo Machado, professor da USP e da PUC-SP, conhecido pesquisador da mídia, citado e endossado pelo jornalista Gabriel Priolli em sua coluna semanal sobre TV na "Gazeta Mercantil" do último dia 13.
Tanto o que diz o professor Machado quanto o que subscreve Priolli parecem-me ser uma espécie de súmula da "ideologia da qualidade" em curso no país.
"Sempre que falamos de televisão, falamos de má televisão. Por que não viramos a câmera para o outro lado, o da boa televisão, que sempre existiu?", pergunta Machado. Ao que Priolli acrescenta: "Se os "modelos degenerados" de TV, no dizer de Arlindo Machado, nos intranquilizam e nos revoltam, comecemos, pois, a valorizar o que de bom existe no veículo (...) Não somos o pior país do mundo, e nossa televisão não é, apenas, o lodaçal que respinga de Ratinhos e quejandos". De onde, conclui o jornalista, é preciso reconhecer na TV "seu papel positivo no fortalecimento de uma identidade nacional (ou várias, convergentes), na coesão do povo brasileiro, na preservação da nossa língua, valores e costumes".
O padrão Globo de qualidade não teria melhores defensores. Ratinho aparece como versão degenerada (aqui o rousseauísmo) porque não desempenha "papel positivo no fortalecimento de uma identidade nacional, na coesão do povo brasileiro", isto é, porque escapa ao padrão Globo.
Este é o ponto. A mágica da Globo foi ter criado a ilusão de um país idealmente unificado, do qual ela seria o espelho. O padrão Globo, esse amálgama de dois mundos que a transformou na emissora que é a "cara do Brasil", foi construído à custa da ocultação do país real. A Globo, à medida que se foi fazendo, escondeu à sua volta uma espécie de lixo inaproveitável (tanto técnico e simbólico quanto humano e social), que não a incomodava muito (nem à classe média que hoje clama por ética e qualidade) enquanto esse lixo aparecia no Ibope de maneira apenas marginal.
Ocorre que o Brasil de Ratinho ganhou visibilidade, começou a perturbar o "país da qualidade". É preciso então tratá-lo como um desvio, uma aberração, uma degeneração, e não como consequência previsível de um país selvagem e cindido ao meio. Não se trata de defender Ratinho, bem entendido. É evidente que ele é uma espécie de clown que se serve da barbárie; é evidente que ele se alimenta do lixo social brasileiro; é evidente que mimetiza o mundo de seus personagens e de sua audiência promovendo linchamentos simbólicos no ar.
Isto posto, ocorre que Ratinho não é pior do que a sociedade que o engendrou. Ratinho diz tanto sobre o Brasil atual quanto a Globo. Incomodados no entanto com o que vêem, os setores bem-pensantes da classe média pedem "ética" e "qualidade".
É o caso de ressuscitar um cachorro morto e dizer que estamos diante de um caso clássico de ideologia, desses de pendurar na parede. Os ideólogos da pequeno-burguesia estão invocando idéias particulares (o padrão Globo) como se fossem ideais, ou valores universais (ética, qualidade, identidade nacional): criam, para falar como Marx, universais abstratos, transformando suas ilusões (de classe?) em representações coletivas e universalmente válidas. São no fundo pequenos-burgueses, porta-vozes bem-intencionados de uma miopia.
No momento em que o padrão Globo começa a fazer água, no momento em que a classe média começa a se refugiar na trincheira da TV paga, no momento em que a TV aberta parece reproduzir e talvez antecipar a desagregação do país, a tarefa da crítica não é falar bem ou mal do veículo, como diz Machado, nem aderir a campanhas por mais "ética", mas olhar o que está acontecendo de maneira um pouco menos complacente e rousseauísta.
Se a TV não deve "pagar sozinha a culpa pela mercantilização da cultura", como quer Machado, isso não desobriga aqueles que se ocupam da TV de tirar as consequências desse processo, sob risco de atuarem como ideólogos das "forças invisíveis do mercado" e fazer, por inocência ou má-fé, a apologia da catástrofe.


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