São Paulo, domingo, 22 de dezembro de 2002

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CRÍTICA

Galvão galvaniza

EUGÊNIO BUCCI

CRITICA-SE bastante, e com fervor, o astro dos programas esportivos da Rede Globo, Galvão Bueno. Quase sempre são críticas pertinentes. Elas normalmente atacam lapsos de estreiteza cognitiva, por assim dizer, do profissional da Globo. Às vezes zombam disso, como fazia o colunista desta Folha, José Simão, que o chamava de "Magdo". Galvão, de fato, tem seus defeitos estridentes. E daí? Ele é um êxito raro e perene da televisão brasileira não porque não tenha defeitos, mas porque os têm em perfeita sintonia com a natureza da televisão no Brasil.
Ele é a personificação da função que a TV exerce junto ao público, que é a de galvanizar (com o perdão do trocadilho) os humores da massa. Entre nós, a televisão existe para unificar o que é disperso e esgarçado. Por isso Galvão é um sucesso: ele comete suas gafes e, por vezes, agride o razoável, mas sempre para unificar o que é desunido, para dar um denominador comum ao que não tem nada em comum. A TV une o Brasil, e Galvão é o narrador em tempo real desse trabalho de unificação. Não é no que ele diz que reside a complexidade do que ele ajuda a realizar, mas a complexidade do que ele ajuda a realizar (a unificação dos humores dispersos da massa) é que precisa das simplificações, às vezes ofensivas, que ele pronuncia. Galvão é muito bom no que faz, pois é redondamente adequado ao papel que a TV projeta sobre ele e espera dele.
No domingo passado, na final do Campeonato Brasileiro, o mestre de cerimônias da Globo deu mais uma demonstração de sua competência intuitiva para a realização de sua função ideológica. Logo no pontapé inicial, abriu sua fala com um pequeno "editorial" sobre o atual estado do futebol brasileiro. Com isso, estabeleceu o pano de fundo, o contexto e a perspectiva em que aquele jogo em particular acontecia; organizou o tabuleiro imaginário em que as emoções iriam ser jogadas, definindo de antemão o modo pelo qual as paixões de cada um seriam equacionadas para o bem do congraçamento de todos. Galvão é um maestro da torcida, com tudo o que isso tem de uniformizador e de empobrecedor, mas é um eficaz, legítimo, reconhecido maestro.
Não é confortável falar bem de Galvão Bueno, parece uma rendição inominável. Mas é necessário, para que melhor se entenda a TV que temos. Um locutor esportivo de TV precisa ser, de uma vez só, apresentador, animador, narrador, jornalista, âncora e mais um pouco. Apresentador porque apresenta o show esportivo como quem apresenta um programa de auditório. Também por isso ele é animador, pois depende dele a tarefa nada amena de injetar ânimo na audiência. Como um Silvio Santos dos esportes, Galvão modula o estado de ânimo do seu público: indica o momento de comemorar, o de ficar apreensivo, o de se deixar embalar pela cadência da cena. Ele também é narrador, claro, pois cabe a ele narrar as competições. Por fim, atua até mesmo como jornalista: entrevista um ou outro convidado e, como um âncora de telejornal, centraliza as informações que veicula e comanda uma equipe de repórteres e analistas. Mas, atenção, é um jornalista em termos. Na TV, os eventos esportivos são espetáculos cujos direitos de transmissão são comprados pelas emissoras; um jogo de futebol é exibido menos como reportagem jornalística e mais como um show contratado, como a apresentação de um cantor ou de um filme. Por isso, Galvão exerce mais a função de animador que a de jornalista, embora às vezes também se apresente como jornalista e às vezes fale e trabalhe como se fosse jornalista.
Não é fácil ser Galvão Bueno, por mais que pareça obtuso. Ser Galvão Bueno é construir o sentido de uma unidade imaginária que não tem sentido. Não que ele seja um gênio. Gênio ele não é. É apenas um "Magdo", vá lá, mas, conscientemente ou não, é um "Magdo" orgânico, essencial e magnânimo.


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