São Paulo, domingo, 23 de agosto de 1998

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CRÍTICA
Leite e escárnio para Mano Brown

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião

Os Racionais MC's são a mais nova diversão de uma certa elite brasileira. É uma elite internacionalista, modernosa, fashion, descolada, que ostenta ares levemente esquerdistas, embora esteja plugada ao consumo e sempre a par das últimas novidades globais.
Uma amostra muito representativa desses "radicais chics" esteve reunida na quinta-feira da semana retrasada no Video Music Brasil, promovido pela MTV, pelo que dizem um dos grandes eventos da cultura brasileira. Estavam lá jornalistas, publicitários, artistas, produtores e agregados vips.
Muita gente viu na premiação dos Racionais tanto um sinal de vitalidade cultural como um sintoma de que o inferno social que eles cantam bateu na consciência dos Jardins. O Brasil teria sido redescoberto na nossa noite de gala juvenil.
Isso parece um tanto ridículo. Tão ridículo quanto o fato de que a festa da MTV sirva de ocasião para para que essas pessoas lembrem, ou relembrem, que em São Paulo existe uma imensa periferia, onde milhões de pessoas vivem sem direitos, sem casa, comida e escola decentes, fumando crack, morrendo pelas mãos da polícia ou se matando em guerras tribais.
Já se falou muito sobre esse grupo da periferia e sobre essa festa pop de elite que o consagrou (sic). O principal, no entanto, não foi dito.
O que são os Racionais? Rappers, óbvio. Mas também, e sobretudo, são netos bastardos dos anos JK. Sim, porque deve ter sido mais ou menos naquele período de grande euforia nacionalista e de urbanização acelerada que os avós de Mano Brown começaram a engordar uma periferia que foi excluída do consumo de carros e de eletrodomésticos, então sinônimos de modernidade, restrita a poucos.
Desde então, os descendentes de vovô Brown não deixariam mais de ser alheados do ideal de vida consumista que a TV no entanto lhes joga diariamente na cara.
Quatro décadas de pauperização urbana e de promessas frustradas, frutos do modelo brasileiro de desenvolvimento, criaram milhões de Manos Brown.
Até os anos 70, a maioria deles talvez tivesse empregos miseráveis; hoje, como eles dizem, estão "sobrevivendo no inferno", não se sabe bem como. A revolta dos Racionais , mais do que legítima, parece até necessária num país que convive com seus horrores e acomoda suas iniquidades desde a escravidão.
Essa revolta, porém, é também regressiva, um sintoma de fim de linha, um exemplo vivo de desagregação social, muito mais do que de vitalidade. Mano Brown e seus colegas estão no limiar do fundamentalismo, como lembrou numa conversa o meu amigo Marcos Augusto Gonçalves, jornalista desta Folha, que no entanto vê esse fenômeno da periferia com mais entusiasmo do que eu.
Ódio contra o "sistema", racismo reativo, devoção à religião e aos valores da família, sentimento de gueto e um certo fascínio pela violência formam um cardápio que pode ser comum ao rap do mundo inteiro, mas que adquire um sentido bem específico na periferia de São Paulo.
E o que fez a elite que se diverte com os Racionais durante a festa da MTV? Transformou-os em atração principal do seu jardim zoológico. De um lado, o representante simpático, carnavalesco, dócil e brincalhão da cultura negra integrada à indústria, Carlinhos Brown, o mestre de cerimônias da festa. De outro, as feras arredias, amedrontadas, como se estivessem enjauladas naquele ambiente hostil. Ao centro, os bichinhos da Parmalat, essa invenção vitoriosa da publicidade, a quem coube a tarefa de entregar o prêmio a Mano Brown e seu grupo.
Se isso não for escárnio, se isso não for humilhação -e das grandes-, nada mais o será. Vimos durante essa festa como a periferia estropiada -assim já ocorrera com a "musa do MST"- se transforma em evento fashion e passa a ser consumida como diversão de elite, como um fato estético do Brasil profundo, agora redescoberto.
Não é todo dia que se vê de maneira assim transparente qual é a forma brasileira de globalização.


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