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CRÍTICA
Leite e escárnio para Mano Brown
FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião
Os Racionais MC's são
a mais nova diversão de
uma certa elite brasileira.
É uma elite internacionalista, modernosa, fashion, descolada, que ostenta ares levemente esquerdistas, embora esteja
plugada ao consumo e
sempre a par das últimas
novidades globais.
Uma amostra muito representativa desses "radicais chics" esteve reunida na quinta-feira da
semana retrasada no Video Music Brasil, promovido pela MTV, pelo que
dizem um dos grandes
eventos da cultura brasileira. Estavam lá jornalistas, publicitários, artistas, produtores e agregados vips.
Muita gente viu na premiação dos Racionais
tanto um sinal de vitalidade cultural como um
sintoma de que o inferno
social que eles cantam
bateu na consciência dos
Jardins. O Brasil teria sido redescoberto na nossa
noite de gala juvenil.
Isso parece um tanto ridículo. Tão ridículo
quanto o fato de que a
festa da MTV sirva de
ocasião para para que essas pessoas lembrem, ou
relembrem, que em São
Paulo existe uma imensa
periferia, onde milhões
de pessoas vivem sem direitos, sem casa, comida
e escola decentes, fumando crack, morrendo pelas mãos da polícia ou se
matando em guerras tribais.
Já se falou muito sobre
esse grupo da periferia e
sobre essa festa pop de
elite que o consagrou
(sic). O principal, no entanto, não foi dito.
O que são os Racionais?
Rappers, óbvio. Mas
também, e sobretudo,
são netos bastardos dos
anos JK. Sim, porque deve ter sido mais ou menos naquele período de
grande euforia nacionalista e de urbanização
acelerada que os avós de
Mano Brown começaram
a engordar uma periferia
que foi excluída do consumo de carros e de eletrodomésticos, então sinônimos de modernidade, restrita a poucos.
Desde então, os descendentes de vovô Brown
não deixariam mais de
ser alheados do ideal de
vida consumista que a
TV no entanto lhes joga
diariamente na cara.
Quatro décadas de pauperização urbana e de
promessas frustradas,
frutos do modelo brasileiro de desenvolvimento, criaram milhões de
Manos Brown.
Até os anos 70, a maioria deles talvez tivesse
empregos miseráveis;
hoje, como eles dizem,
estão "sobrevivendo no
inferno", não se sabe
bem como. A revolta dos
Racionais , mais do que
legítima, parece até necessária num país que
convive com seus horrores e acomoda suas iniquidades desde a escravidão.
Essa revolta, porém, é
também regressiva, um
sintoma de fim de linha,
um exemplo vivo de desagregação social, muito
mais do que de vitalidade. Mano Brown e seus
colegas estão no limiar
do fundamentalismo, como lembrou numa conversa o meu amigo Marcos Augusto Gonçalves,
jornalista desta Folha,
que no entanto vê esse fenômeno da periferia com
mais entusiasmo do que
eu.
Ódio contra o "sistema", racismo reativo,
devoção à religião e aos
valores da família, sentimento de gueto e um certo fascínio pela violência
formam um cardápio
que pode ser comum ao
rap do mundo inteiro,
mas que adquire um sentido bem específico na
periferia de São Paulo.
E o que fez a elite que se
diverte com os Racionais
durante a festa da MTV?
Transformou-os em
atração principal do seu
jardim zoológico. De um
lado, o representante
simpático, carnavalesco,
dócil e brincalhão da cultura negra integrada à indústria, Carlinhos
Brown, o mestre de cerimônias da festa. De outro, as feras arredias,
amedrontadas, como se
estivessem enjauladas
naquele ambiente hostil.
Ao centro, os bichinhos
da Parmalat, essa invenção vitoriosa da publicidade, a quem coube a tarefa de entregar o prêmio
a Mano Brown e seu grupo.
Se isso não for escárnio,
se isso não for humilhação -e das grandes-,
nada mais o será. Vimos
durante essa festa como a
periferia estropiada
-assim já ocorrera com
a "musa do MST"- se
transforma em evento
fashion e passa a ser consumida como diversão de
elite, como um fato estético do Brasil profundo,
agora redescoberto.
Não é todo dia que se vê
de maneira assim transparente qual é a forma
brasileira de globalização.
E-mail: fbsi@uol.com.br
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