São Paulo, domingo, 24 de maio de 1998

Próximo Texto | Índice

CRÍTICA
Saqueadores e bucaneiros nas tardes de domingo

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião

Foi o álibi, ou a desculpa, de uma gripe daquelas que levou este colunista a passar o último domingão prostrado diante da TV. Foram ao todo umas dez horas, com muito zapping e pequenas interrupções. Um dia que começa na companhia de Xuxa e termina já tarde da noite na presença de Silvio Santos talvez não seja muito digno de nota. Ainda assim, arrisco um par de comentários a respeito dessa união do inútil com o desagradável.
Visto em conjunto, o domingo televisivo é uma espécie de cassinolândia. Praticamente toda a programação está organizada em torno do caça-níquel pelo 0900. É difícil entender, diante do volume de ofertas e da forma compulsiva com que se tenta aliciar o espectador, que alguém consiga sair ileso, sem ceder aos apelos. A TV foi tomada por saqueadores. O marketing mais baixo e agressivo atravessa o dia como um zunido que vai atazanando suas vítimas até dobrá-las entre uma e outra atração.
Alguns desses bucaneiros eletrônicos trabalham em dupla, dividindo tarefas. Há o palhaço, que distrai, e o engravatado, cuja função é dar alguma credibilidade ao bote nos domicílios. É o caso da Manchete. Ali, o "Domingo Total" começa com Sérgio Mallandro, sempre inimputável, e um almofadinha que procura disfarçar sua avidez com a máscara de moço bem-intencionado.
Por um acaso, no último domingo o SBT realizava o tal Teleton, um dia inteiro de programação dedicado a arrecadar fundos para uma instituição de caridade, a AACD. Num país com tantas carências, dirá o leitor, alguém pode ser contra uma iniciativa tão nobre? Não se trata simplesmente de ser contra, mas de entender como a solidariedade se confunde com o negocismo, como o espírito comunitário, ou coisa que que o valha, só é despertado no espectador pelo artifício da competição desenfreada. Não há como discernir, na iniciativa da emissora, entre boas intenções e lobby de si própria. Instrumentalização oportunista da solidariedade para fins que lhes são totalmente alheios, ou opostos, é o mínimo que se pode dizer desse tipo de coisa.
Mas o saque dominical é mais variado. Aparece também na devassa da vida de pessoas famosas. Xuxa tem um quadro chamado "Intimidade", no qual arranca segredos de alcova de seus entrevistados. Faustão tem o seu "Arquivo Confidencial", mais inofensivo, é verdade, em sua profusão de revelações lacrimejantes. Os piratas da intimidade, no entanto, são Gugu Liberato e Otávio Mesquita, que aliás se merecem.
Ambos têm quadros que consistem em invadir a casa de algum astro, supostamente sem o seu consentimento, para então acordá-lo de supetão e a seguir vasculhar seus armários, pertences, roupas íntimas, tudo o que sua vocação de cão farejador alcançar. A graça toda está nessa curiosidade quase ginecológica que o apresentador sacia sem nenhum escrúpulo.
Otávio Mesquita é o mestre dessa arte. Bisbilhota e fuça banheiros e gavetas com uma habilidade e uma desenvoltura de assustar. Desnecessário dizer que está a um passo da delinquência. Gabava-se, no último domingo, de quase ter sido preso ao tentar invadir os quartos dos jogadores da seleção brasileira em Teresópolis. É exatamente desse tipo de comportamento que depende seu preço nesse mercado de iniquidades.

Walter Mercado, assim como Athayde Patreze e Ratinho, virou cult. Afora os coitados que acreditam em suas vigarices de pacotilha, essa miniatura de sábio que apavora sua clientela diante de uma bola de cristal vai conquistando simpatizantes também pelo que tem de caricato e kitsch. Parece mesmo uma mistura de Gugu Liberato com Marici Trussard. O fato de que seus seguidores apareçam quase sempre passeando por Miami, e digam que o fazem por indicação sua, não deixa de ser sugestivo. Quem sabe não venha por aí a Mercadolândia, uma Disney do ocultismo instalada exatamente no templo que melhor exprime o que há de pior no capitalismo.



Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.