São Paulo, Domingo, 24 de Outubro de 1999
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CRÍTICA

A vitória do pré-feminismo de mercado

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Crítico de TV

Qualquer pessoa relativamente esclarecida que eventualmente pare em frente a uma banca de jornal para espiar as opções que se lhe oferecem pode ter a sensação incômoda de estar diante de um cemitério do feminismo -cada uma das revistas dedicadas à mulher sendo uma lápide dessa paisagem. Nunca houve tantas publicações voltadas para o que Simone de Beauvoir chamou um dia -e lá se vão algumas décadas- de "segundo sexo". A história parece estar lhe dando razão, ironicamente.
Modetes sorridentes disputam na vitrine aberta da calçada a atenção do possível comprador -alugam seus corpos para vender ilusões. "Você também pode ser como eu", é o que dizem na capa das revistas, geralmente desmentindo já pelo olhar a promessa de felicidade de que são as portadoras profissionais.
Há revistas que ensinam a cozinhar e trazem logo a seguir a última receita mágica para perder as calorias indicadas páginas atrás. A segmentação do mercado do narcisismo e da tirania da beleza criou monstros como publicações para leigos especializadas em cirurgia plástica -retalhe-se você também, queridinha, transforme-se numa boneca, é o que parecem solicitar e prometer.
O mais comum, porém, ainda são as revistas destinadas simplesmente "à mulher", sem especificações. No seu interior há um pouco de tudo, cada seção ou reportagem representando um pedaço dos escombros do feminismo. Aprenda a masturbar seu marido, diz uma, descendo a detalhes técnicos dessa operação tão complexa; elas contam como praticam o adultério, diz uma outra; saiba como fisgar seu homem, convida a terceira.
Como a época atual é utilitária e pragmática, mais do que moralista, essas revistam apostam na geléia de costumes e arriscam agredir um grupo para satisfazer a outro, buscando nessa colagem frankensteiniana das imagens femininas algo como o mínimo denominador comum entre todas as mulheres do mundo, que é dado pelo conservadorismo reinante. Feminismo de mercado e machismo são no fundo cambiáveis.
Isso se aplica também à TV. Adriane Galisteu e Hebe Camargo, Tiazinha e Silvia Poppovic, Xuxa e Ana Maria Braga são tão iguais e diferentes entre si quanto as revistas expostas nas bancas de jornal. O programa "Mais Você", protagonizado por esta última representante da nova-velha mulher, que estreou com sucesso na última semana na Globo, não é pior que seus similares, a não ser apenas pelo fato de que nele a condição subalterna é vivida à moda antiga, fazendo escancaradamente tábula rasa das conquistas da mulher independente. Mais do que tirar proveito dos escombros do feminismo, miss Braga encarna a revanche de uma mãe de família idealizada; seu apelo e popularidade vêm do fato de projetar sobre o presente uma imagem fantasiosa do passado.
Já se escreveu bastante sobre o significado de um programa como esse integrar a programação da Globo. O padrão da emissora (cuja qualidade é preciso obviamente qualificar e discutir) está sendo sacrificado em nome da audiência. A Globo passa a incorporar o lixo que obrigou as suas não-concorrentes a produzir durante décadas. Isso é fato, mas gostaria de chamar a atenção para o que há de reciclagem moderninha nessa receita retrô kitsch quando assimilada pela Globo.
Ana Maria Braga continua sendo o que sempre foi -e chegamos a ter inveja de quem consegue organizar seu universo mental em torno de piadas frívolas de papagaios, tarôs e panelas. A frequência com que a palavra "amor" sai da sua boca, como bem notou Marcelo Rubens Paiva, é abjeta, sugere uma caricatura de vida interior, um sub-romantismo de resultados a empilhar clichês sobre as profundezas da alma.
Na Globo, porém, esse escárnio doméstico-utilitário e pseudo-espiritual vem temperado por ingredientes que visam legitimá-lo para além de seu público cativo. Há por exemplo as crônicas de Carlos Heitor Cony, um suflê de sofisticação. Há também Glória Kalil, consultora de moda dos "modernos", que empresta um verniz de prestígio de gente fina para a apresentadora que veio de uma emissora "brega". Essa, a meu ver, a novidade desse programa em sua versão global, novidade que faz com que fale não mais apenas à dona-de-casa de um passado remoto e idealizado, mas sim que se dirija "à mulher", de modo geral, como as revistas neoconservadoras.
Um exemplo aparentemente tolo, mas muito sintomático: no programa de estréia, Glória Kalil ensinava as mulheres a usar colares -devem ser bem justos na garganta, dizia, acrescentando a seguir que os materiais da estação eram quatro, entre eles o "ouro escovado" e o "étnico". A violência contida nessa enumeração espontânea -ouro escovado e étnico- é daquelas que ou se percebe imediatamente ou não adianta mais explicar. O que é a moda étnica? O que sobrou da Índia, da África, aquilo que dessas culturas e desses povos transformados em carvão ainda tem valor de mercado e glamour exótico no mundo globalizado?
Ana Maria Braga obviamente não devia ter idéia do que sua colunista de moda estava falando, embora, ironicamente, ela também seja um utensílio étnico reaproveitado nestes tempos em que a mulher subalterna volta a ter um enorme valor de mercado.

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