São Paulo, Domingo, 25 de Abril de 1999
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CRÍTICA

Ô, coitados!

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião

"Jeca Total deve ser Jeca Tatu Doente curado Representante da gente na sala Defronte da televisão" ("Jeca Total", canção de Gilberto Gil, de 1975)

Há uma safra de novos velhos programas humorísticos na TV. Quase todos requentados e apelativamente banais. Se valem da e apostam na ignorância para avançar na audiência. Pouco há de animador nessa nova ração para rir que a TV espalha para o povaréu.
A "Escolinha do Barulho", da Record, é apenas um decalque desbotado da escolinha de Chico Anysio. Integra a estratégia da emissora de Edir Macedo de macaquear o padrão global.
A "Zorra Total", da Globo, por sua vez, não parece ir além da reunião forçada dos humoristas emergentes e decadentes disponíveis no "casting" da emissora. Aposta para ver se algum deles decola ou ressuscita a ponto de merecer um programa próprio. É a Globo em tempos de vacas magras, fazendo a sua xepa em horário que um dia já foi nobre.
Entre todos os novos humorísticos, o mais interessante, ou o único digno de comentário, é justamente o pior deles: "Ô, Coitado", do SBT, programa que nasceu do sucesso de um dos personagens que integrava "A Praça É Nossa".
Filomena, a empregada doméstica vivida pela atriz Gorete Milagres, é uma matuta vinda dos rincões das Minas Gerais. Trabalha na casa de um canastrão decadente, Stevie Formoso, ou Moacyr Franco representando a caricatura de si mesmo. Tudo no programa soa grotesco. As piadas são horríveis; o roteiro, absurdo; o cenário, capenga; a iluminação, amadorística.
Nada se salva porque na verdade nada disso importa, a não ser Filomena e seu bordão -"ô, coitado"-, que caíram no gosto popular. Filomena já se transformou num tipo brasileiro, no sentido forte da expressão. Seu personagem é arquetípico, pertence a uma linhagem que tem no Jeca Tatu, de Monteiro Lobato, e em Mazzaropi, o próprio, suas maiores referências. Nérso da Capitinga é figura secundária dessa família.
O que chama atenção é a capacidade renovada de fascínio desse personagem à primeira vista anacrônico, que sobreviveu a todas as mudanças por que passou o país. (Faz lembrar, de passagem, a coqueluche recente em torno de Nélson Rodrigues, cujos tipos e conflitos derivam em grande medida de uma sociedade patriarcal.)
No Brasil, no entanto, o progresso, ou todo o esforço de modernização, parece resultar apenas na reciclagem ou na reposição de estruturas mentais e sociais arcaicas. Basta dar uma espiada no noticiário político do dia ou ver os indicadores de miséria para se ter uma noção mais concreta do que não muda no país. Também não deve ser à toa que o Novo Dicionário Aurélio registra nada menos que 65 sinônimos para o termo caipira, um tipo histórico ao que se sabe virtualmente extinto ou em extinção.
Voltando à família de Filomena, é curioso que o Jeca Tatu tenha merecido por parte de Lobato três versões bem distintas. O tema foi abordado pela professora Marisa Lajolo, no artigo "Jeca Tatu em Três Tempos" (do livro "Os Pobres na Literatura Brasileira", organizado por Roberto Schwarz).
O Jeca nasceu em 1914 descrito como um tipo inferior e abjeto, um "piolho da terra", uma "espécie de homem baldio", "inadaptável à civilização". Já na década de 20, esse anti-herói caboclo deixa de ser o responsável pelo atraso do país para ser transformado por Lobato na sua maior vítima. Chamado então pelo diminutivo carinhoso Jeca Tatuzinho, é usado como símbolo de propaganda de produtos farmacêuticos, uma espécie de porta-voz da saúde pública e da higienização nacional, como Sujismundo o seria na TV para o regime militar durante o milagre.
Na sua terceira e última versão, de 1947, o Jeca passa a se chamar Zé Brasil, encarna, por assim dizer, a condição de um povo inteiro, é a própria tradução da nacionalidade. Referindo-se ao Jeca de trinta anos atrás, Zé Brasil diz: "Tudo que ele tinha eu também tenho. A mesma opilação, a mesma maleita, a mesma miséria".
Ô, coitado, diria Filomena, olhando para seus antepassados. Assim como o personagem de Mazzaropi no cinema, a doméstica também parece se valer da ambiguidade da palavra matuto (caipira e simplório, de um lado, desconfiado e esperto, de outro). Seus dentes são podres e o patrão não lhe paga o salário, mas ela acredita ser mais astuta e mesmo superior a ele. Escarnece ao mesmo tempo em que se compadece do patrão, repetindo sempre "ô, coitado".
Os zés do lado de cá da tela se identificam com essa alma matreira. Como Filomena, dão sempre um jeito nas coisas e se divertem com a própria tragédia. O presidente-sociólogo tinha afinal razão quando afirmou que o brasileiro não passa de um caipira.


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