São Paulo, domingo, 25 de outubro de 1998

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TV NO MUNDO

O real e o falso nos 'reality-shows'

ESTHER HAMBURGER
especial para a Folha

Há algum tempo abordei nesta coluna o escândalo em torno da descoberta de que casos apresentados no programa de Jerry Springer, sucesso nos Estados Unidos no gênero sensacionalismos da vida pessoal, não eram autênticos. A reportagem do TV Folha do último domingo revelou que o "Programa do Ratinho" utiliza práticas semelhantes. Indivíduos recrutados em bairros pobres da Grande São Paulo gravam cenas de falso flagrante e representam roteiros transmitidos por intermediários da produção do programa. Recebem um cachê por sua performance. Na era da comunicação eletrônica, efeitos especiais permitem a criação de quase tudo a partir de fragmentários pontilhados milimétricos. As imagens não só são reprodutíveis, como carecem de massa e de compromisso com um local ou tempo definido. Paradoxalmente, em meio a tantos ilusionismos, há um clamor por autenticidade, realidade, verdade. Em uma época em que é possível simular praticamente tudo, as pessoas buscam os resquícios da terra firme, da materialidade corpórea. O sucesso dos "reality-shows" como o nome do gênero já diz, vem da idéia de que esses programas exibem "a vida como ela é", como dizia a vinheta do "Aqui, Agora". A câmera treme nas coberturas em flagrante. A qualidade precária do vídeo caseiro serve como evidência de que o registro é improvisado de verdade, como se o acontecimento tivesse pego os repórteres de surpresa. Ou como se os cinegrafistas fossem mesmo tão amadores ao ponto de não ter conhecimento técnico para gravar sem tremer ou para editar o material gravado. Mas a invenção não acontece só no filme carregado de efeitos. Eis que até mesmo os shows que utilizam uma linguagem nua e crua também inventam. A narrativa sensacionalista característica do mundo cão, supostamente mais autêntica e mais popular, também é inventada. Aqui, a invenção da linguagem não se esconde sob os mistérios de técnicas sempre renovadas. Trata- se da armação simplória, da encenação de cenas extremadas improvisadas por pessoas que não são atores. Se a performance mais realista é fictícia, que verdade resta nas imagens televisivas? Em sintonia com as definições editoriais, espectadores alegam que gostam dos "reality shows" porque eles retratam a realidade como ela é. A novela para eles é fantasiosa. O bom é o caso verdadeiro, real, por exemplo do pai que estupra a filha e, denunciado, se arrepende perante a câmera, literalmente pressionado contra a parede. A verossimilhança das imagens televisivas é tal que o senso comum diz que, se aparece lá, é porque é verdade. Mas, com a descoberta -aliás previsível dada a má atuação do elenco- de que os "reality shows" não passam de novelas baratas, baseadas em microrroteiros anônimos, representadas por atores de uma só performance e realizadas por diretores secretos, o que sobra da notícia?

E-mail: ehamb@uol.com.br



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