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São Paulo, domingo, 26 de janeiro de 2003

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CRÍTICA

A Estrela, os pampas e o novo imaginário

IVANA BENTES

BANDEIRAS vermelhas agitadas por "manifestantes" diante de um carro de luxo que tem uma estrela como marca. A campanha do Étoile, da Citröen, carro que custa R$ 42 mil, já se adequou à nova imagem do Brasil, se apropriando do vocabulário e DA iconografia da esquerda. "Enfim a socialização do conforto e da beleza! Tome posse" é o slogan do comercial.
A conversão mágica dos valores aconteceu. Estamos bem distantes dos anos 90, quando um cartão de crédito se apresentava como "o cartão de quem não precisa", tendo como símbolo um jovem casal no verão de Paris, tomando champanhe no café da manhã. Passamos do esnobismo ao populismo. Faz realmente diferença?
Além do alvoroço publicitário com os signos da esquerda, estamos assistindo a uma outra conversão mágica dos valores, na geografia televisiva.
Depois de superexpor a zona sul carioca e os Jardins paulistas, palcos privilegiados das novelas, a ficção televisiva foi se estendendo para o Brasil rural dos coronéis em conflito com a plebe rude. Criou uma Bahia cenográfica, chegou aos sertões, passou pelo Pantanal e recentemente descobriu a favela ("Cidade dos Homens").
Com "A Casa das Sete Mulheres", minissérie da Globo, a televisão finalmente chegou aos pampas gaúchos, tirando o Rio Grande do Sul da sua exclusão simbólica. É que Estados, culturas e regiões inteiras vêm sendo lentamente "anexadas", via TV, ao imaginário da nação. Curiosamente, a Amazônia, lugar mítico da nacionalidade, rendeu uma única novela (na Manchete, um fracasso) e incontáveis e repetitivos "Globo Repórter", que parecem condenados ao fascínio morno do olhar turístico-ecológico.
Os pampas agora entram para a "estória". Em "A Casa das Sete Mulheres", a Revolução Farroupilha segue o modelo hollywoodiano do cinema histórico e vira pano de fundo para o folhetim, o grande espetáculo visual e a encenação das tradições. A geografia, hipervalorizada num paisagismo de cores e efeitos visuais, concorre com o melodrama. A encenação das tradições rivaliza com a trama novelesca de sempre, histórias de amor impossíveis, frágeis e fortes donzelas que lutam por garanhões de capa e espada.
Definitivamente, a TV concorre com a história, e os autores de TV têm status de novos historiadores, com todas as ambiguidades que vêm daí. Hollywood já fez a conversão há muito tempo, e, desde então, ficou difícil achar que Cleópatra não tinha a cara de Elizabeth Taylor.
Esse nacional-publicitário-brasileiro, mais folclore, mais povo, mais Brasil, já vem sendo capitalizado há algum tempo pela TV. Neonacionalismo que vai aplainando as diversidades e radicalidades regionais: integrando todas as diferenças a essa identidade nacional fossilizada, como vimos na comemoração oficiosa dos 500 anos do Brasil, que tentou, sem sucesso, convencer que as nações indígena e negra tinham o mesmo status da nação branca brasileira.
A TV absorveu e popularizou certo nacionalismo retrógrado, o velho nacional-popular, graças a uma linguagem moderna e eficiente. Um avanço! Muita gente vai dizer. E, sem dúvida, devemos nos orgulhar da nossa TV-Nação, quando ela busca propostas mais autorais.
Mas é preciso desconfiar desse nacional-popular televisivo descoberto pelos publicitários. Neste exato momento, acontece, em Porto Alegre, o Fórum Social Mundial, onde se agitam bandeiras internacionalistas, de todas as cores. A diversidade cultural desloca todos os nacionalismos fundamentalistas e dá novo sentido à identidade nacional.
Quantos anos serão precisos para a TV incorporar esse outro imaginário?



Ivana Bentes, 38, é crítica e pesquisadora de cinema, audiovisual e novas mídias, além de professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da UFRJ.


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