São Paulo, domingo, 26 de agosto de 2001

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CRÍTICA

Sexo e razão

HÉLIO SCHWARTSMAN

FRESCO , veado, bicha, boiola, marica, maricona, qualira, efeminado, ventilado, pederasta, tobeiro, invertido, bicha-louca, bichona, uranista, pirobo, bandeja, fanchono, frango, gorgota, fruta, engole-espada, oré, suné, pintosa, puto, sodomita, tia, sacana, xibungo, paca, arejado, vinte-e-quatro. Esses são alguns dos termos mais comumente usados para se referir ao homossexual masculino no Brasil. Preconceito inscrito e carimbado na língua? Sem dúvida.
Mas, antes de imprecar contra a homofobia ou até a ignorância do brasileiro, convém lembrar que homossexualismo diz respeito a sexo, e a sociedade -qualquer sociedade- tem decididamente um problema com sexo, em todas as suas modalidades. Como sinônimo de "meretriz", o dicionário "Aurélio" registra nada menos do que 96 vocábulos, poucos deles enaltecedores. Para designar o ato sexual, encontrei pelo menos 94 expressões.
Admitindo também o uso de imagens rebuscadas, como "afogar o ganso", "molhar o biscoito", "introduzir o lagostim no capitólio", são quase infinitas as formas de se referir à cópula. Se é verdade que a língua é a expressão do caráter de um povo, então o brasileiro é, acima de tudo, um tarado.
Essa longa e discutível introdução vem a propósito do "Fica Comigo" gay, que foi ao ar, pela MTV, no último dia 8. Não há dúvida de que a exibição do programa representa um marco tanto na história da TV brasileira como na do movimento pela igualdade dos direitos dos homossexuais. Vale lembrar que a TV, quando aborda o homossexualismo, normalmente o faz de forma caricata. Quem aparece não é o gay, mas a bicha-louca, cheia de trejeitos e, paradoxalmente, quase assexuada.
Assim, é animador constatar que a TV, ou melhor, um seu pedaço que se pretende vanguardista, a MTV, seja capaz de promover um programa de namoro com homossexuais. O episódio gay foi idêntico à versão heterossexual, que vai ao ar semanalmente. Fica implícita a asserção de que um cidadão é um cidadão independentemente do sexo das pessoas que leve para a cama. Trata-se de um corolário até óbvio da democracia, mas que ainda está longe de ter sido inteiramente assimilado pela sociedade.
Esse foi o lado bom do "Fica Comigo" gay. Há obviamente também aspectos menos positivos. Pelo que li, a MTV não tem planos para transformar a atração em série fixa. Ao que parece, existem dificuldades para conseguir participantes que se disponham a aparecer na TV. Outra hipótese a considerar é a de haver resistência por parte de anunciantes. É um pouco como se se afirmasse a "normalidade" do homossexualismo com a exibição de um programa em versão gay para em seguida negá-la, ao recusar-lhe um padrão de regularidade.
Também a reação do público merece considerações. O "Fica Comigo" gay deu à emissora um de seus maiores índices de audiência. Posso ser pessimista, mas não creio que a maioria dos telespectadores assistiu ao programa como gesto político pelo fim da discriminação das minorias. Embora eu não disponha de pesquisas, tenho a sensação de que boa parte da audiência queria mesmo é assistir a dois homens se beijando. É possível que o caráter de "aberração" tenha predominado sobre o politicamente correto.
É claro que toda a discurseira em torno dos direitos de minorias é importante. Fundamental até. Mas ela é incapaz, pelo menos num primeiro momento, de mudar a percepção das pessoas. Da mesma forma que certos textos bíblicos, notadamente o "Cântico dos Cânticos", podem ser lidos como peças eróticas, é possível assistir de modo preconceituoso a um programa concebido para ser libertador. Quando a Globo explode num shopping o casal de lésbicas da novela, não o faz por militar nas fileiras homófobas, mas apenas por preferir o caminho fácil de dar ao telespectador o que as pesquisas sugerem que ele quer ver.
E, quando o assunto é sexo, desmoronam as muralhas da racionalidade possível. (É agora que aquela minha introdução algo barroca ganha lógica.) Não somos capazes de, individual ou socialmente, abordar o sexo de forma apenas racional. Qual é o sentido, por exemplo, de ser contrário ao que dois homens podem fazer em cima (ou embaixo) de uma cama? Trata-se de uma ação absolutamente sem consequências sociais, sobre a qual quem não está no quarto nem deveria se posicionar.
Raciocínio análogo pode ser aplicado à prostituição. Devemos, obviamente, lamentar e combater as iniquidades sociais que levam uma mulher a buscar seu sustento no comércio carnal, mas não há como ser contra o meretrício. Ou bem nos utilizamos desse serviço e não podemos nos opor a ele, ou não o usamos e, nessa hipótese, não nos diz respeito. A lógica é irrefutável, mas, ainda assim, a "profissão mais antiga do mundo" não só segue polêmica como permanece ilegal em vários países do mundo, alguns supostamente civilizados.
Tinha razão Albert Einstein, que afirmou: "Época triste a nossa, em que é mais difícil quebrar um átomo do que um preconceito".



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