São Paulo, domingo, 27 de setembro de 1998

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CRÍTICA

A política em ruínas

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião

Faltam poucos dias para o encerramento da propaganda eleitoral pela TV. Alguns a chamam, inapropriadamente, de horário político. Deve ser a título de cortesia.
Saltamos da censura oficial imposta aos candidatos no período do regime militar à era da ditadura da publicidade midiática, sem termos passado pelo aprendizado democrático. Trocamos Armando Falcão por Duda Mendonça.
O primeiro sintetizava em sua figura carrancuda uma época cinzenta em que, no seu bordão, não havia nada a declarar. O segundo, conforme relata uma revista famosa que o transformou recentemente em tema de capa, é simpático, falante, consome livros de auto-ajuda de forma voraz e, quando o stress ameaça derrubá-lo, se estica num divã em seu escritório para relaxar ouvindo música new age. O homem do passado e o homem do futuro -símbolos de duas épocas.
Nos tempos da farda, o problema estava em anular qualquer oposição cassando qualquer palavra que pudesse pôr em risco a legitimidade fajuta de um regime de força. Hoje, sob a batuta dos magos da urna -os publicitários-, a censura é branca, opera por multiplicação de imagens e palavras, por um excesso de mensagens, discursos e pirotecnias que criam uma espécie de balbúrdia entrópica, onde tudo tende a se indiferenciar e anular reciprocamente.
É curioso ver como a política evaporou do horizonte. Não é possível reconhecer nas campanhas quaisquer diferenças ideológicas ou divergências programáticas entre os candidatos. Essas estão por assim dizer ilhadas em siglas nanicas, cujos representantes assumem aos olhos do espectador um aspecto quixotesco. São tipos como Chapolim, a versão latina e subnutrida do super-homem.
Os programas eleitorais se dirigem cada vez mais ao consumidor privado -e usam as técnicas habituais da publicidade para aliciá-lo. Na época em que a política se tornou um ramo do marketing e, além disso, tem um quê de diversionismo de massas, não faz mesmo muito sentido apelar à consciência do cidadão.
Pode parecer um certo exagero, mas a própria noção do que seja um cidadão está se tornando peça de museu. Recentemente, uma ministra de Estado do atual governo escreveu um artigo na seção "Tendências/Debates" desta Folha cujo título era "O brasileiro como cliente". Isto é, o Estado agora é visto como uma empresa (enxutinha, obviamente) e o cidadão como um cliente que compra os seus serviços. A idéia de que a administração pública é -deveria ser- um instrumento de garantia de direitos coletivos e de distribuição de renda (via impostos por exemplo) foi substituída pela visão privatista do Estado e do cidadão.
A contrapartida dessa despolitização, da redução da política à administração privada das coisas, é a estetização da política. O fascismo abusou desse recurso, como se sabe. A publicidade televisiva o recicla e potencializa. Despolitização e estetização temperam em doses igualmente hiperbólicas a campanha de TV de um certo candidato ao Senado por São Paulo, para ficar apenas num exemplo didático.
Não foi à toa que um grande jornalista francês, Ignacio Ramonet, autor do livro "Geopolítica do Caos" (disponível em português pela coleção "Zero à Esquerda", da editora Vozes), inventou o neologismo "era globalitária" para caracterizar os dias que correm. Diz ele que o novo totalitarismo -o dos mercados e da lógica inexorável da economia- não precisa mais sufocar seus opositores, censurar a imprensa, impedir o livre funcionamento das instituições. Pelo contrário, ele as estimula na medida exata em que toda essa ilusão democrática vai perdendo capacidade de se constituir num contrapeso ao curso autodestrutivo do capitalismo. Para pensar na cama, como diz o outro.

Momento cultural de Hebe Camargo na última segunda-feira: um certo grupo musical chamado "Fat Family" foi ao seu programa. Eram seis ou sete, todos negros, gordos, imensos e felizes. Hebe, depois de puxar a barba de um deles e dizer que o pêlo era duro, pediu a todos que exibissem os dentes diante da platéia, porque os dentes dos negros eram lindos, uma gracinha. Dito e feito: todos mostraram sorridentes e dóceis suas gengivas às câmeras. Herança colonial também é isso. Lembranças da senzala. Vindo de quem vem, não é novidade.


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