São Paulo, Domingo, 28 de Março de 1999
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CRÍTICA

A "Central do Brasil" é bela

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor interino de Opinião

Como se comportar diante desse fenômeno enfadonho, o Oscar?
Mesmo para os padrões do cinema hegemônico, pasteurizados por definição, o Oscar destoa como uma aberração.
A sensação ao vê-lo é semelhante à provocada por um programa de Hebe Camargo, mas potencializada pelo fato de que a abundância de dinheiro torna a vocação cafona daquele megashow virtualmente sem limites ou fronteiras.
Qualquer opinião sobre essa noitada de negócios está condenada a engordar a vasta ridicularia que a envolve. Além disso, quase tudo e seu contrário já foi dito sobre o Oscar, antes e depois da grande noite. Não teria muito a acrescentar à lucidez de Marcelo Coelho, cuja coluna publicada na última quarta-feira na Ilustrada vai, como de hábito, ao ponto, ainda que, dessa vez, tingida por um nacionalismo expresso num tom que não é bem o seu.
"Aquilo tudo é uma patriotada militar, uma iniciativa de guerra". "A cerimônia do Oscar é apenas a confirmação do poder americano". Em duas frases brutas, eis toda a questão.
No que diz respeito à TV, no entanto, talvez haja ainda um par de observações a serem feitas. Vistas as coisas do ângulo brasileiro, a grande vencedora do Oscar é a Rede Globo. A pequena Hollywood dos trópicos também fez a sua festa. Nada mais adequado que o Oscar -e que esse Oscar em particular- para que a Globo representasse o papel para o qual foi designada: o de centro de gravidade de um país que são dois e que a história (do) real vem mostrando ser irredimível, mas que no imaginário que a emissora ajudou a inventar resplandece redimido.
Esse "ponto médio" da cultura nacional que a Globo encarna e irradia é uma versão subdesenvolvida da fábrica de ilusões de Hollywood.
Todos, ou quase, nos comovemos com as imagens da Central do Brasil, a estação, e dos tipos que por lá circulam, exibidas durante toda a semana no "Jornal Nacional", em reportagens especiais.
O que vem à tona nessas imagens? A alegria intransitiva, a efusividade, a força afirmativa, a confiança teimosa e a vocação cordial "desse povo sofrido", que parece como que predestinado a alguma recompensa desde que se eternize numa espécie de agitação bovina.
A violência, a miséria, o horror -enfim, a história que engendrou esses burros de carga herdeiros de três séculos de escravidão surge quase como moldura, como aresta, como uma casualidade ou um detalhe daquelas imagens comoventes. Essa naturalização paisagística da história brasileira, essa "postalização" do país que serve à Globo está presente em "Central do Brasil" e vai além de ambos.
Lembre-se que recentemente um ministro ornamental, não o da Cultura, o outro, do Turismo, disse abertamente que vê "um caráter até lírico em certos mendigos e despossuídos", o que os tornaria semelhantes a Carlitos, o personagem mítico do cinema.
Quando vemos Maurício Kubrusly transmitir ao vivo de Cruzeiro do Nordeste a cerimônia do Oscar, ao lado de mulheres enrugadas torcendo com velas acesas nas mãos pela estatueta brasileira, temos a impressão de que aquela cena, exibida naquelas circunstâncias, resume involuntariamente 500 anos de tragédia. São "fiéis servidores da nossa paisagem" (verso de Carlos Drummond de Andrade, usado como epígrafe do belíssimo livro de Modesto Carone, "Resumo de Ana").


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