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CRÍTICA
A "Central do Brasil" é bela
FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor interino de Opinião
Como se comportar
diante desse fenômeno
enfadonho, o Oscar?
Mesmo para os padrões
do cinema hegemônico,
pasteurizados por definição, o Oscar destoa como
uma aberração.
A sensação ao vê-lo é
semelhante à provocada
por um programa de Hebe Camargo, mas potencializada pelo fato de que
a abundância de dinheiro
torna a vocação cafona
daquele megashow virtualmente sem limites ou
fronteiras.
Qualquer opinião sobre
essa noitada de negócios
está condenada a engordar a vasta ridicularia
que a envolve. Além disso, quase tudo e seu contrário já foi dito sobre o
Oscar, antes e depois da
grande noite. Não teria
muito a acrescentar à lucidez de Marcelo Coelho,
cuja coluna publicada na
última quarta-feira na
Ilustrada vai, como de
hábito, ao ponto, ainda
que, dessa vez, tingida
por um nacionalismo expresso num tom que não
é bem o seu.
"Aquilo tudo é uma
patriotada militar, uma
iniciativa de guerra". "A
cerimônia do Oscar é
apenas a confirmação do
poder americano". Em
duas frases brutas, eis toda a questão.
No que diz respeito à
TV, no entanto, talvez
haja ainda um par de observações a serem feitas.
Vistas as coisas do ângulo brasileiro, a grande
vencedora do Oscar é a
Rede Globo. A pequena
Hollywood dos trópicos
também fez a sua festa.
Nada mais adequado que
o Oscar -e que esse Oscar em particular- para
que a Globo representasse o papel para o qual foi
designada: o de centro de
gravidade de um país que
são dois e que a história
(do) real vem mostrando
ser irredimível, mas que
no imaginário que a
emissora ajudou a inventar resplandece redimido.
Esse "ponto médio"
da cultura nacional que a
Globo encarna e irradia é
uma versão subdesenvolvida da fábrica de ilusões
de Hollywood.
Todos, ou quase, nos
comovemos com as imagens da Central do Brasil,
a estação, e dos tipos que
por lá circulam, exibidas
durante toda a semana
no "Jornal Nacional",
em reportagens especiais.
O que vem à tona nessas imagens? A alegria intransitiva, a efusividade,
a força afirmativa, a confiança teimosa e a vocação cordial "desse povo
sofrido", que parece como que predestinado a
alguma recompensa desde que se eternize numa
espécie de agitação bovina.
A violência, a miséria, o
horror -enfim, a história que engendrou esses
burros de carga herdeiros
de três séculos de escravidão surge quase como
moldura, como aresta,
como uma casualidade
ou um detalhe daquelas
imagens comoventes. Essa naturalização paisagística da história brasileira,
essa "postalização" do
país que serve à Globo está presente em "Central
do Brasil" e vai além de
ambos.
Lembre-se que recentemente um ministro ornamental, não o da Cultura,
o outro, do Turismo, disse abertamente que vê
"um caráter até lírico em
certos mendigos e despossuídos", o que os tornaria semelhantes a Carlitos, o personagem mítico do cinema.
Quando vemos Maurício Kubrusly transmitir
ao vivo de Cruzeiro do
Nordeste a cerimônia do
Oscar, ao lado de mulheres enrugadas torcendo
com velas acesas nas
mãos pela estatueta brasileira, temos a impressão de que aquela cena,
exibida naquelas circunstâncias, resume involuntariamente 500 anos de
tragédia. São "fiéis servidores da nossa paisagem" (verso de Carlos
Drummond de Andrade,
usado como epígrafe do
belíssimo livro de Modesto Carone, "Resumo
de Ana").
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