São Paulo, domingo, 28 de maio de 2000


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CRÍTICA

O novo humor de Jô Soares

Alcino Leite Neto

NO DIA em que compreendermos que Jô Soares não faz jornalismo, talvez tudo fique mais fácil -para ele, seus críticos, seus entrevistados e o público. O apresentador levou ao paroxismo os modelos norte-americanos que o inspiraram e desenvolveu um gênero novo de entretenimento que, na falta de outra expressão, poderia ser chamado de "conversa humorística".
Jô é essencialmente um ator cômico, dos maiores do país. Foi como tal que pôde criar uma penca deliciosa de personagens, não só na televisão, mas também no teatro e no cinema.
Quando "Jô Soares Onze e Meia" surgiu, no SBT, o "timing" da produção e a desenvoltura do apresentador impressionaram a todos. A produção cuidava para que a pauta noticiosa do país comparecesse prontamente ao programa, enquanto Jô cercava seus entrevistados com perguntas incômodas, sempre daquela maneira cordial e maliciosa que lhe é própria.
Personagens do noticiário eram aguardados no programa como se cumprissem a um ritual da vida pública. O tête-à-tête com o apresentador representava o auge de sua exposição midiática. "Ir ao Jô" virou uma expressão corrente. Políticos e outras personalidades postavam-se na fila de entrevistados como se fossem receber uma comenda.
Jô sabia ouvir, interpelar, cruzar acontecimentos e provocar autoridades para que viessem ao programa. Tinha-se a impressão de que ele havia lido os jornais antes de entrar em cena. Em seus melhores momentos, o "Jô Onze e Meia" foi agenda obrigatória das pessoas que se interessavam pelo curso das coisas no país.
Seja porque os tempos atuais são menos palpitantes do que os dos primórdios do programa (Collor, Itamar Franco, a eleição de FHC), seja porque o Ibope pode ter empurrado o apresentador para horizontes menos capciosos, seja ainda porque ele cansou de correr atrás dos fatos -o truísmo é que o "Programa do Jô" é outro programa e, de algum modo, tão interessante quanto o "Jô Soares Onze e Meia".
Muito antes que deixasse o SBT, a transformação já estava em curso. Na Globo, o formato incipiente foi sedimentado. E, a fim de deixar explícita sua vocação cômica, Jô resolveu rememorar em flashes num telão os seus antigos personagens na emissora -Norminha, o exilado em Paris etc. Foi uma maneira de dizer que o apresentador Jô Soares é também um personagem.
O novo personagem de Jô é diferente de um entrevistador: fala mais e ouve menos. Sua performance não nasce do diálogo, do questionamento, de uma preocupação qualquer com a informação ou o esclarecimento público, mas da idéia prefixada de que o convidado do programa só está ali para tornar-se ele próprio um comediante ou, ao menos, um objeto de divertimento.
O "Programa do Jô" é um show humorístico, cuja matéria-prima é a realidade mesma, entendida como uma série de eventos potencialmente cômicos que podem ser estrelados por gente comum ou famosa.
Professores de filosofia, colecionadores de insetos, escritores de última hora, atrizes bissexuais ou políticos inflamados -todo e qualquer ser humano tem algo a oferecer ao espetáculo noturno das curiosidades humanas.
Que tenham lançado um livro, cometido uma gafe, brigado com alguém, vivido uma aventura -isso é apenas pretexto para os convidados serem submetidos ao seguinte processo perverso: terem suas vidas transformadas em curiosidade, depois em anedota e, finalmente, em esquete, no qual contracenam com o protagonista Jô Soares.
A qualidade do programa, ou de cada uma das conversas-esquetes, passa então a depender não das informações que obtém, mas da capacidade de Jô Soares de descobrir e desenvolver o núcleo humorístico da cena que está improvisando na hora.
Se muitas vezes ele não se interessa pelo que o entrevistado diz, parece desatento, muda abruptamente de assunto ou finge que não escutou, é porque está preocupado com o desenrolar de sua criação "in progress" -e seu efeito imediato nos risos da pequena platéia e, quem sabe, do telespectador.
É uma ironia da história do entretenimento: cansado de multiplicar-se em personagens engraçados, Jô Soares resolveu converter todo mundo em tipos humorísticos.

O novo público
Pegadinhas e videocassetadas são artifícios ultracontemporâneos.
São a expressão televisiva, em formato de gags ou pequenos quadros cômicos, da tendência a transformar o cotidiano da gente comum em diversão pública -como acontece em sites da Internet que captam durante 24 horas seguidas a vida das pessoas, em seriados da TV americana que filmam o dia-a-dia de adolescentes ou como ocorreu na experiência vivida por uma modelo chilena, instalada em uma casa de vidro no centro de Santiago a fim de que os transeuntes observassem sua intimidade.
A espetacularização da vida banal, hoje, é simultânea à banalização da vida privada.



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