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CRÍTICA
O novo humor de Jô Soares
Alcino Leite Neto
NO DIA em que compreendermos que Jô Soares
não faz jornalismo, talvez tudo fique mais fácil
-para ele, seus críticos, seus entrevistados e o
público. O apresentador levou ao paroxismo os
modelos norte-americanos que o inspiraram e desenvolveu um gênero novo de entretenimento que, na falta de
outra expressão, poderia ser chamado de "conversa humorística".
Jô é essencialmente um ator cômico, dos maiores do
país. Foi como tal que pôde criar uma penca deliciosa de
personagens, não só na televisão, mas
também no teatro e no cinema.
Quando "Jô Soares Onze e Meia" surgiu, no SBT, o "timing" da produção e a
desenvoltura do apresentador impressionaram a todos. A produção cuidava
para que a pauta noticiosa do país comparecesse prontamente ao programa,
enquanto Jô cercava seus entrevistados
com perguntas incômodas, sempre daquela maneira cordial e maliciosa que lhe
é própria.
Personagens do noticiário eram aguardados no programa como se cumprissem a um ritual da vida pública. O tête-à-tête com o apresentador representava o
auge de sua exposição midiática. "Ir ao
Jô" virou uma expressão corrente. Políticos e outras personalidades postavam-se
na fila de entrevistados como se fossem
receber uma comenda.
Jô sabia ouvir, interpelar, cruzar acontecimentos e provocar autoridades para que viessem ao
programa. Tinha-se a impressão de que ele havia lido os
jornais antes de entrar em cena. Em seus melhores momentos, o "Jô Onze e Meia" foi agenda obrigatória das
pessoas que se interessavam pelo curso das coisas no país.
Seja porque os tempos atuais são menos palpitantes do
que os dos primórdios do programa (Collor, Itamar
Franco, a eleição de FHC), seja porque o Ibope pode ter
empurrado o apresentador para horizontes menos capciosos, seja ainda porque ele cansou de correr atrás dos
fatos -o truísmo é que o "Programa do Jô" é outro programa e, de algum modo, tão interessante quanto o "Jô
Soares Onze e Meia".
Muito antes que deixasse o SBT, a transformação já estava em curso. Na Globo, o formato incipiente foi sedimentado. E, a fim de deixar explícita sua vocação cômica,
Jô resolveu rememorar em flashes num telão os seus antigos personagens na emissora -Norminha, o exilado em
Paris etc. Foi uma maneira de dizer que o apresentador Jô
Soares é também um personagem.
O novo personagem de Jô é diferente de um entrevistador: fala mais e ouve menos. Sua performance não nasce
do diálogo, do questionamento, de uma preocupação
qualquer com a informação ou o esclarecimento público,
mas da idéia prefixada de que o convidado do programa
só está ali para tornar-se ele próprio um comediante ou,
ao menos, um objeto de divertimento.
O "Programa do Jô" é um show humorístico, cuja matéria-prima é a realidade mesma, entendida como uma série de eventos potencialmente cômicos que podem ser estrelados por gente comum ou famosa.
Professores de filosofia, colecionadores de insetos, escritores de última hora, atrizes bissexuais ou políticos inflamados -todo e qualquer ser humano tem algo a oferecer ao espetáculo noturno das curiosidades humanas.
Que tenham lançado um livro, cometido uma gafe, brigado com alguém, vivido uma aventura -isso é
apenas pretexto para os convidados
serem submetidos ao seguinte processo perverso: terem suas vidas transformadas em curiosidade, depois em
anedota e, finalmente, em esquete, no
qual contracenam com o protagonista
Jô Soares.
A qualidade do programa, ou de cada uma das conversas-esquetes, passa
então a depender não das informações que obtém, mas da capacidade de
Jô Soares de descobrir e desenvolver o
núcleo humorístico da cena que está
improvisando na hora.
Se muitas vezes ele não se interessa
pelo que o entrevistado diz, parece desatento, muda abruptamente de assunto ou finge que não escutou, é porque está preocupado com o desenrolar de sua criação "in progress" -e seu
efeito imediato nos risos da pequena platéia e, quem sabe,
do telespectador.
É uma ironia da história do entretenimento: cansado de
multiplicar-se em personagens engraçados, Jô Soares resolveu converter todo mundo em tipos humorísticos.
O novo público
Pegadinhas e videocassetadas são artifícios ultracontemporâneos.
São a expressão televisiva, em formato de gags ou pequenos quadros cômicos, da tendência a transformar o
cotidiano da gente comum em diversão pública -como
acontece em sites da Internet que captam durante 24 horas seguidas a vida das pessoas, em seriados da TV americana que filmam o dia-a-dia de adolescentes ou como
ocorreu na experiência vivida por uma modelo chilena,
instalada em uma casa de vidro no centro de Santiago a
fim de que os transeuntes observassem sua intimidade.
A espetacularização da vida banal, hoje, é simultânea à
banalização da vida privada.
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