|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CRÍTICA
A dialética do corno
HÉLIO SCHWARTSMAN
PROVAVELMENTE cometo uma heresia, mas
vou falar dos testes de fidelidade e de Hegel.
Para quem não sabe, os testes de fidelidade são
pegadinhas, exibidas nos programas de Sérgio
Mallandro e de João Kléber, em que uma pessoa, em geral
uma mulher, põe à prova a integridade de seu marido/namorado/companheiro, colocando-o diante de uma bela
atriz que lhe dará bola. Em princípio, a vítima não sabe
que está sendo filmada por câmaras ocultas. A produção
dos programas registra tudo, e o vídeo será posteriormente exibido para a mulher queixosa. O
público, isto é, nós, terá a oportunidade
de ver a reação do marido diante da modelo insinuante e também a reação da
mulher assistindo à reação do marido.
Os programas conservam alguns elementos de humor infantil: a surpresa
(que tomará de assalto o cônjuge traidor), a repetição (os diferentes "episódios" seguem sempre o mesmo esquema) e o tom levemente sexual (quando a
"coisa" começa a esquentar, a atriz
anuncia a pegadinha).
Para quem não sabe, Georg Wilhelm
Friedrich Hegel (1770-1831) é um filósofo
alemão que se notabilizou por desenvolver um método dialético para explicar o
progresso da história e das idéias. Numa
simplificação que chega a ser rude, parte-se de uma idéia (tese), que é confrontada com a sua negação (antítese), gerando assim uma terceira idéia (síntese),
que conserva elementos das duas anteriores, mas é diferente de ambas.
Hegel conserva vários elementos do idealismo e da dialética kantianos, notadamente a noção de que a forma como percebemos o mundo através de nossas mentes passa
ela mesma a constituir o mundo, a realidade por nós percebida. Mas Hegel radicaliza o conceito até invertê-lo: a
dialética, a tese que enfrenta a antítese para gerar a síntese, deixa de ser só um modo de a nossa mente pensar a
realidade e passa a ser algo que a realidade impõe a nós e
nossas mentes.
As implicações não são triviais. Para Hegel, vai importar menos como cada indivíduo pensa o mundo e muito
mais como todos o pensam. Para o filósofo alemão, existe
uma consciência humana comum, que é determinada pelo conflito entre idéias contraditórias e suas sucessivas superações (sínteses) através da história.
Voltando à TV, como, depois de um certo número de
programas, a consciência dos telespectadores já tem conhecimento da existência dos testes, tornando-os num
certo sentido inócuos, eles assumiram uma nova forma.
Agora, é também possível que a mulher apenas pense
estar preparando uma armadilha para o marido, mas, na
realidade, ele terá um acerto com a produção: o objeto do
experimento do qual somos observadores privilegiados
deixa de ser o comportamento do marido para se tornar a
reação da mulher diante da suposta infidelidade do companheiro. Em vez de a atriz se voltar para o rapaz, comunicando-o da encenação, é a própria mulher que recebe a
notícia de que foi o verdadeiro alvo da brincadeira.
Os elementos infantis do programa são conservados,
mas com alterações, como exige a boa dialética. O esquema de surpresa e repetição permanece, mas ampliado. Agora, há a possibilidade de a vítima ser o homem ou a
mulher. Ao toque sexual, acrescenta-se o de "malandragem".
Só que, mais uma vez, a consciência
comum já sabe que a vítima pode ser
um ou outro, o que vai tornando o formato do programa obsoleto. Eventuais participantes, que também participam da consciência coletiva, já estão
de certo modo vacinados contra a surpresa.
Esse processo permite antever que a
atração vai mais uma vez mudar de
forma. A tese (mulher testa homem)
encontrou a sua antítese (homem testa mulher). Falta agora uma síntese.
Para Hegel, o curso da história é
uma experiência universal em que o
espírito absoluto tenta entender a si
mesmo. Quando ele conseguir fazê-lo,
seguir-se-á a liberdade absoluta, e a própria história chegará ao fim. Enquanto isso não ocorre, as pessoas ficam
com uma visão fragmentada dos processos. Elas estão,
em maior ou menor grau, alienadas.
Saindo do plano do absoluto e voltando para o teste de
fidelidade, mulher, homem e público desconhecem
quem será a vítima. Os próprios apresentadores fingem
ignorar o desfecho dos VTs. Só quem sabe tudo, quem
tem a visão de conjunto, é a produção, que trabalha de
modo a encobrir os vestígios que permitiriam ao público
pensar o programa e antever seu resultado. O show mantém o suspense, mas à custa da alienação do espectador.
Para o programa funcionar, a produção tem de estar um
passo à frente do público.
Nessas condições, o espectador deixa de ser sujeito para
se tornar mero objeto para aqueles que produzem o
show. É mais ou menos nesse sentido que Hegel diria que
nós não assistimos à TV, mas somos assistidos por ela.
Numa tradução prosaica, sem frescuras filosóficas: o
teste de fidelidade é empulhação. Se de fato testava alguma coisa, a dinâmica que os programas assumiram aniquila essa possibilidade e ainda faz o público de palhaço.
Texto Anterior: Astrologia - Barbara Abramo Próximo Texto: Próximos capítulos Índice
|