São Paulo, domingo, 29 de julho de 2001

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CRÍTICA

A dialética do corno

HÉLIO SCHWARTSMAN

PROVAVELMENTE cometo uma heresia, mas vou falar dos testes de fidelidade e de Hegel.
Para quem não sabe, os testes de fidelidade são pegadinhas, exibidas nos programas de Sérgio Mallandro e de João Kléber, em que uma pessoa, em geral uma mulher, põe à prova a integridade de seu marido/namorado/companheiro, colocando-o diante de uma bela atriz que lhe dará bola. Em princípio, a vítima não sabe que está sendo filmada por câmaras ocultas. A produção dos programas registra tudo, e o vídeo será posteriormente exibido para a mulher queixosa. O público, isto é, nós, terá a oportunidade de ver a reação do marido diante da modelo insinuante e também a reação da mulher assistindo à reação do marido.
Os programas conservam alguns elementos de humor infantil: a surpresa (que tomará de assalto o cônjuge traidor), a repetição (os diferentes "episódios" seguem sempre o mesmo esquema) e o tom levemente sexual (quando a "coisa" começa a esquentar, a atriz anuncia a pegadinha).
Para quem não sabe, Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) é um filósofo alemão que se notabilizou por desenvolver um método dialético para explicar o progresso da história e das idéias. Numa simplificação que chega a ser rude, parte-se de uma idéia (tese), que é confrontada com a sua negação (antítese), gerando assim uma terceira idéia (síntese), que conserva elementos das duas anteriores, mas é diferente de ambas.
Hegel conserva vários elementos do idealismo e da dialética kantianos, notadamente a noção de que a forma como percebemos o mundo através de nossas mentes passa ela mesma a constituir o mundo, a realidade por nós percebida. Mas Hegel radicaliza o conceito até invertê-lo: a dialética, a tese que enfrenta a antítese para gerar a síntese, deixa de ser só um modo de a nossa mente pensar a realidade e passa a ser algo que a realidade impõe a nós e nossas mentes.
As implicações não são triviais. Para Hegel, vai importar menos como cada indivíduo pensa o mundo e muito mais como todos o pensam. Para o filósofo alemão, existe uma consciência humana comum, que é determinada pelo conflito entre idéias contraditórias e suas sucessivas superações (sínteses) através da história.
Voltando à TV, como, depois de um certo número de programas, a consciência dos telespectadores já tem conhecimento da existência dos testes, tornando-os num certo sentido inócuos, eles assumiram uma nova forma.
Agora, é também possível que a mulher apenas pense estar preparando uma armadilha para o marido, mas, na realidade, ele terá um acerto com a produção: o objeto do experimento do qual somos observadores privilegiados deixa de ser o comportamento do marido para se tornar a reação da mulher diante da suposta infidelidade do companheiro. Em vez de a atriz se voltar para o rapaz, comunicando-o da encenação, é a própria mulher que recebe a notícia de que foi o verdadeiro alvo da brincadeira.
Os elementos infantis do programa são conservados, mas com alterações, como exige a boa dialética. O esquema de surpresa e repetição permanece, mas ampliado. Agora, há a possibilidade de a vítima ser o homem ou a mulher. Ao toque sexual, acrescenta-se o de "malandragem".
Só que, mais uma vez, a consciência comum já sabe que a vítima pode ser um ou outro, o que vai tornando o formato do programa obsoleto. Eventuais participantes, que também participam da consciência coletiva, já estão de certo modo vacinados contra a surpresa.
Esse processo permite antever que a atração vai mais uma vez mudar de forma. A tese (mulher testa homem) encontrou a sua antítese (homem testa mulher). Falta agora uma síntese.
Para Hegel, o curso da história é uma experiência universal em que o espírito absoluto tenta entender a si mesmo. Quando ele conseguir fazê-lo, seguir-se-á a liberdade absoluta, e a própria história chegará ao fim. Enquanto isso não ocorre, as pessoas ficam com uma visão fragmentada dos processos. Elas estão, em maior ou menor grau, alienadas.
Saindo do plano do absoluto e voltando para o teste de fidelidade, mulher, homem e público desconhecem quem será a vítima. Os próprios apresentadores fingem ignorar o desfecho dos VTs. Só quem sabe tudo, quem tem a visão de conjunto, é a produção, que trabalha de modo a encobrir os vestígios que permitiriam ao público pensar o programa e antever seu resultado. O show mantém o suspense, mas à custa da alienação do espectador. Para o programa funcionar, a produção tem de estar um passo à frente do público.
Nessas condições, o espectador deixa de ser sujeito para se tornar mero objeto para aqueles que produzem o show. É mais ou menos nesse sentido que Hegel diria que nós não assistimos à TV, mas somos assistidos por ela.
Numa tradução prosaica, sem frescuras filosóficas: o teste de fidelidade é empulhação. Se de fato testava alguma coisa, a dinâmica que os programas assumiram aniquila essa possibilidade e ainda faz o público de palhaço.


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