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CRÍTICA
Os maníacos do Jardim Botânico
FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião
O show macabro -e
não a entrevista, como se
tem concedido- levado
ao ar no último domingo
pelo "Fantástico" com
Francisco de Assis Pereira, mais conhecido como
o "maníaco do parque",
é um marco na história
da Globo, mesmo levando em conta o histórico
de sensacionalismo do
"show da vida".
Talvez nunca, na trajetória muitas vezes turva
dessa emissora, tenha ficado tão evidente como o
jornalismo pode ser posto a serviço da detração,
da irresponsabilidade, do
obscurantismo.
Tudo foi meticulosamente arquitetado para
provocar no espectador
os mesmos efeitos de um
filme de terror. Seria apenas mais uma atitude de
mau gosto se tudo não
passasse de ficção. Como
se trata de um personagem real, a questão não é
propriamente estética.
Não fosse o Brasil o país
que é, teria, além das implicações morais evidentes, desdobramentos de
ordem legal.
Consta que a "entrevista" com Francisco
funcionou como teste da
da Globo, que parece disposta a adotar o formato
com regularidade na sua
programação. Seria com
esse tipo de mercadoria
que a emissora pretende
disputar espaço no açougue televisivo?
Ratinho, Leão e congêneres do mundo animal
terão muito o que aprender com a líder de audiência. Seus programas,
perto do que a Globo levou ao ar, parecem pouco mais do que uma Disneylândia do mal.
Descendo a alguns pormenores dessa "entrevista" fica mais fácil enxergar o horror do conjunto da obra:
1) Ao apresentar o quadro, Glória Maria diz:
"Ele confessou 11 crimes, mas pode ter matado mais de 100". O que
veio a seguir tratou de
transformar em verdade
essa suposição.
2) Antes disso, Pedro
Bial, quem sabe sensibilizado pela idéia de que o
governo discute um
"manual de qualidade"
para a televisão, alerta:
"Um aviso para os pais:
o conteúdo dessa entrevista é em vários momentos assustador".
Mais do que o conteúdo,
assustadores foram a edição da entrevista, o comportamento do repórter
Marcelo Rezende, induzindo de maneira acintosa o preso a admitir mais
de cem crimes, e o aparato místico-científico
(duas videntes, um astrólogo e dois psiquiatras)
mobilizado para reforçar
a tese da Globo de que
Francisco Pereira é o "o
homem que pode se tornar o maior matador em
série da história", nas
palavras do repórter.
3) A direção do espetáculo tétrico, com mais de
40 minutos, ficou a cargo
de Roberto Talma, diretor renomado de obras
de ficção. Terá sido dele a
idéia de utilizar insistentemente a trilha sonora
do filme "O Cabo do
Medo", entre algumas
outras, ao longo da exibição. Também terá sido
dele a iniciativa de criar
uma atmosfera ameaçadora, com pano de fundo
negro e luz artificial sobre o rosto do entrevistado, onde se destacavam
da penumbra os olhos
iluminados por uma faixa, como se fosse uma
máscara às avessas.
Novamente de Talma
deve ter sido a idéia de repetir sete vezes a imagem
do repórter perguntando
ao preso, com ares de delegado: "e depois dessa,
qual foi a próxima?". A
resposta, adulterada,
vem editada em frases
curtas, todas destinadas a
satanizar o entrevistado,
a essa altura transformado num canibal, que, segundo o programa , "revela a frieza e o prazer na
hora de matar".
4) O comportamento
do repórter fez lembrar o
de alguns policiais heterodoxos na hora de arrancar confissões. "Eu
tenho medo", diz Francisco. "De que? De ter
matado mais do que você
lembra?", pergunta Rezende. "Pode ser", é a
resposta. Nova pergunta:
"O número 100 está ficando claro na sua cabeça?", É inequívoca a tentativa de induzir o entrevistado a assumir mais
assassinatos.
5) Para "esclarecer" o
caso, a Globo leva ao Parque do Estado, local dos
crimes, duas videntes.
Um delas diz: "o campo
de energia dele passava a
receber a influência dessas entidades maléficas
que habitam aqui". Expressões como "energia
telúrica" e afins são
mencionadas para explicar os crimes. O astrólogo vem a seguir, com o
mapa astral de Francisco
nas mãos, joga mais lenha na fogueira do ocultismo para "chegar às
mesmas conclusões".
6) Findo o espetáculo
desse misticismo rastaquera, que por si só mereceria uma análise à parte, é a vez de a "ciência"
dar o seu parecer. Com a
palavra, o psiquiatra:
"Ele deve ter praticado
delitos antes, muito provavelmente. O mal de
que ele padece leva a esse
tipo de leitura. É praticamente impossível ele começar a delinquir com 30
anos". O psiquiatra sugere que tenha começado
a matar com 18 ou 19,
não se sabe por quê.
O efeito do conjunto é
devastador. Provoca ao
mesmo tempo asco e desolação. Mas é bom ter
fresca na memória essa
reportagem espantosa.
Há aí um sintoma de regressão social e uma espécie de anúncio de que
dias piores virão.
E-mail: fbsi@uol.com.br
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