São Paulo, domingo, 29 de novembro de 1998

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CRÍTICA

Os maníacos do Jardim Botânico

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião

O show macabro -e não a entrevista, como se tem concedido- levado ao ar no último domingo pelo "Fantástico" com Francisco de Assis Pereira, mais conhecido como o "maníaco do parque", é um marco na história da Globo, mesmo levando em conta o histórico de sensacionalismo do "show da vida".
Talvez nunca, na trajetória muitas vezes turva dessa emissora, tenha ficado tão evidente como o jornalismo pode ser posto a serviço da detração, da irresponsabilidade, do obscurantismo.
Tudo foi meticulosamente arquitetado para provocar no espectador os mesmos efeitos de um filme de terror. Seria apenas mais uma atitude de mau gosto se tudo não passasse de ficção. Como se trata de um personagem real, a questão não é propriamente estética. Não fosse o Brasil o país que é, teria, além das implicações morais evidentes, desdobramentos de ordem legal.
Consta que a "entrevista" com Francisco funcionou como teste da da Globo, que parece disposta a adotar o formato com regularidade na sua programação. Seria com esse tipo de mercadoria que a emissora pretende disputar espaço no açougue televisivo?
Ratinho, Leão e congêneres do mundo animal terão muito o que aprender com a líder de audiência. Seus programas, perto do que a Globo levou ao ar, parecem pouco mais do que uma Disneylândia do mal.
Descendo a alguns pormenores dessa "entrevista" fica mais fácil enxergar o horror do conjunto da obra:
1) Ao apresentar o quadro, Glória Maria diz: "Ele confessou 11 crimes, mas pode ter matado mais de 100". O que veio a seguir tratou de transformar em verdade essa suposição.
2) Antes disso, Pedro Bial, quem sabe sensibilizado pela idéia de que o governo discute um "manual de qualidade" para a televisão, alerta: "Um aviso para os pais: o conteúdo dessa entrevista é em vários momentos assustador". Mais do que o conteúdo, assustadores foram a edição da entrevista, o comportamento do repórter Marcelo Rezende, induzindo de maneira acintosa o preso a admitir mais de cem crimes, e o aparato místico-científico (duas videntes, um astrólogo e dois psiquiatras) mobilizado para reforçar a tese da Globo de que Francisco Pereira é o "o homem que pode se tornar o maior matador em série da história", nas palavras do repórter.
3) A direção do espetáculo tétrico, com mais de 40 minutos, ficou a cargo de Roberto Talma, diretor renomado de obras de ficção. Terá sido dele a idéia de utilizar insistentemente a trilha sonora do filme "O Cabo do Medo", entre algumas outras, ao longo da exibição. Também terá sido dele a iniciativa de criar uma atmosfera ameaçadora, com pano de fundo negro e luz artificial sobre o rosto do entrevistado, onde se destacavam da penumbra os olhos iluminados por uma faixa, como se fosse uma máscara às avessas.
Novamente de Talma deve ter sido a idéia de repetir sete vezes a imagem do repórter perguntando ao preso, com ares de delegado: "e depois dessa, qual foi a próxima?". A resposta, adulterada, vem editada em frases curtas, todas destinadas a satanizar o entrevistado, a essa altura transformado num canibal, que, segundo o programa , "revela a frieza e o prazer na hora de matar".
4) O comportamento do repórter fez lembrar o de alguns policiais heterodoxos na hora de arrancar confissões. "Eu tenho medo", diz Francisco. "De que? De ter matado mais do que você lembra?", pergunta Rezende. "Pode ser", é a resposta. Nova pergunta: "O número 100 está ficando claro na sua cabeça?", É inequívoca a tentativa de induzir o entrevistado a assumir mais assassinatos.
5) Para "esclarecer" o caso, a Globo leva ao Parque do Estado, local dos crimes, duas videntes. Um delas diz: "o campo de energia dele passava a receber a influência dessas entidades maléficas que habitam aqui". Expressões como "energia telúrica" e afins são mencionadas para explicar os crimes. O astrólogo vem a seguir, com o mapa astral de Francisco nas mãos, joga mais lenha na fogueira do ocultismo para "chegar às mesmas conclusões".
6) Findo o espetáculo desse misticismo rastaquera, que por si só mereceria uma análise à parte, é a vez de a "ciência" dar o seu parecer. Com a palavra, o psiquiatra: "Ele deve ter praticado delitos antes, muito provavelmente. O mal de que ele padece leva a esse tipo de leitura. É praticamente impossível ele começar a delinquir com 30 anos". O psiquiatra sugere que tenha começado a matar com 18 ou 19, não se sabe por quê.
O efeito do conjunto é devastador. Provoca ao mesmo tempo asco e desolação. Mas é bom ter fresca na memória essa reportagem espantosa. Há aí um sintoma de regressão social e uma espécie de anúncio de que dias piores virão.


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