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CRÍTICA
Do 'Bem Amado' ao 'Fim do Mundo'
FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião
Na última semana, escrevi a respeito de Dias
Gomes. Menos sobre
suas novelas, que ficaram
fora do texto, como uma
espécie de ponto de fuga,
e mais sobre a forma com
que sua dramaturgia,
amplamente identificada
com o ideário nacional-popular do desenvolvimentismo do final dos
anos 50, foi reciclada pela
telenovela e incorporada
ao universo do entretenimento ditado pelo mercado que vingou com a
Globo, a fábrica de diversões do país há 30 anos.
Dias Gomes chegou à
Globo em 69 como dramaturgo renomado e
acabou como apenas
mais um autor de novelas
entre outros, peça de
uma indústria vitoriosa.
Vivia há tempos numa
espécie de quase ostracismo, meio ofuscado por
pelo menos duas gerações de novos teledramaturgos que ocuparam os
espaços considerados
nobres da emissora.
Teve vários problemas
com a censura, mas foi
sob os militares que viveu
seu apogeu como novelista. A ditadura que o
venceu foi outra -a da
audiência, o que fica claro quando se examina
tanto sua trajetória quanto a história da telenovela
e da própria Globo.
Quando passou a investir pesadamente na invenção de uma teledramaturgia brasileira, a
Globo no início e ao longo de vários anos liberou
o horário das dez da noite
para fazer experimentações, pelo menos em termos. Isso durou desde
"Verão Vermelho"
(1970), novela de estréia
de Dias Gomes (que havia assinado outra, "A
Ponte dos Suspiros", em
69, com o pseudônimo
de Stela Calderón), até
"Sinal de Alerta" (78/9),
também dele, quando o
núcleo das 22h foi extinto, inviabilizado pelo
fiasco de público.
As novelas mais criativas, ou de melhor rendimento estético, são desse
período (aliás o único em
que a rigor faz algum
sentido colocar o problema também em termos
"artísticos", e não estatísticos ou francamente
mercadológicos). Basta
citar, além de "Bandeira
2" (71/2), "O Bem Amado (73), "O Espigão"
(74) e "Saramandaia"
(76), todas do próprio
Dias Gomes, "O Bofe"
(72/3) e "O Rebu"
(74/75), de Bráulio Pedroso (afastado, aliás, da
primeira delas antes de
terminá-la por problemas com a audiência,
mostrando como o realismo estatístico da Globo já atuava desde o início dos anos 70).
Ou, ainda, "Os Ossos
do Barão" (73/4) e "O
Grito" (75/6), ambas do
dramaturgo Jorge Andrade. A última, uma das
novelas mais lúgubres já
realizadas pela Globo,
tratava do cotidiano dos
habitantes de um prédio
residencial de luxo, construído na avenida São
João, mas que se deteriorava com a construção do
Minhocão. No centro, os
gritos noturnos de um
garoto com transtornos
mentais que aterrorizava
os demais moradores.
Novela que de certa forma diagnostica e antecipa o processo de encortiçamento do centro e a
degradação de São Paulo,
de uma violência inimaginável para o padrão dos
caça-níqueis exibidos hoje pela Globo.
O Dias Gomes que interessa acaba nesse período
heróico da telenovela,
que aliás valeria a pena
estudar melhor, inclusive
à luz das limitações impostas pela ditadura, então no auge da selvageria.
O sucesso acachapante
e extemporâneo de "Roque Santeiro" (exibida
em 85/6, depois de ter sido censurada dez anos
antes) é um fenômeno
apenas mercadológico (e
faz lembrar a frase do filósofo alemão Hegel: o
momento mais alto que
algo pode alcançar é
aquele em que já começa
seu declínio).
Pastiche facilitário e
populista de "O Bem-Amado", se vale da mesma cidadezinha imaginária do interior, transformada em alegoria do
Brasil, recurso obviamente datado e do qual
só se tirava algum proveito num ambiente sufocado pela censura. Proveito
ainda assim muito limitado, já que os conflitos
reais do Brasil do "milagre" não cabiam mais na
"equação alagoana" de
Dias Gomes desde 73.
"Mandala" (87) é melhor nem comentar. Depois dela veio "Araponga" (90), história de um
ex-agente do SNI vivido
por Tarcísio Meira, uma
espécie de Agente 86 que,
aposentado junto com o
regime militar, tomava
mamadeira, promovia
sessões de autoflagelo,
colecionava calcinhas, tinha fixação pela figura
materna, sofria de asma e
idolatrava James Bond.
A Globo cuspia no mesmo prato em que havia
comido, e Dias Gomes
acreditava estar acertando as contas com a história quando, de fato, só reforçava o clichê inócuo
do militar aparvalhado.
Um desastre, enfim, seguido de outro, a minissérie "Decadência"
(95), em que o mesmo
autor mais uma vez atuava como ideólogo da Globo, pondo em cena a história do pastor evangélico inescrupuloso e corrupto (alusão a Edir Macedo, então em plena
cruzada contra o império
de Roberto Marinho).
Depois da "Decadência", "O Fim do Mundo" (96), prova definitiva de que o subversivo e
suas veleidades revolucionárias haviam sido triturados pela moenda do
Jardim Botânico -usina
de criar e de destruir talentos e ilusões.
Cometi dois erros na semana passada: 1) O dramaturgo Jorge Andrade,
ao contrário de Dias Gomes, Gianfrancesco
Guarnieri, Ariano Suassuna, Oduvaldo Vianna
Filho e Augusto Boal,
não era, como esses, militante de esquerda, como foi dito; 2) O CPC
(Centro Popular de Cultura), e seu teatro com
motivações pedagógico-revolucionárias, foi
criado no final de 1961,
no Rio de Janeiro, e não
em 64, como ficou sugerido. Após o golpe militar, o CPC foi reprimido e
se desarticulou.
Fica registrado meu pedido de desculpas aos leitores da coluna.
E-mail: fbsi@uol.com.br
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