São Paulo, Domingo, 30 de Maio de 1999
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CRÍTICA

Do 'Bem Amado' ao 'Fim do Mundo'

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião

Na última semana, escrevi a respeito de Dias Gomes. Menos sobre suas novelas, que ficaram fora do texto, como uma espécie de ponto de fuga, e mais sobre a forma com que sua dramaturgia, amplamente identificada com o ideário nacional-popular do desenvolvimentismo do final dos anos 50, foi reciclada pela telenovela e incorporada ao universo do entretenimento ditado pelo mercado que vingou com a Globo, a fábrica de diversões do país há 30 anos.
Dias Gomes chegou à Globo em 69 como dramaturgo renomado e acabou como apenas mais um autor de novelas entre outros, peça de uma indústria vitoriosa. Vivia há tempos numa espécie de quase ostracismo, meio ofuscado por pelo menos duas gerações de novos teledramaturgos que ocuparam os espaços considerados nobres da emissora.
Teve vários problemas com a censura, mas foi sob os militares que viveu seu apogeu como novelista. A ditadura que o venceu foi outra -a da audiência, o que fica claro quando se examina tanto sua trajetória quanto a história da telenovela e da própria Globo.
Quando passou a investir pesadamente na invenção de uma teledramaturgia brasileira, a Globo no início e ao longo de vários anos liberou o horário das dez da noite para fazer experimentações, pelo menos em termos. Isso durou desde "Verão Vermelho" (1970), novela de estréia de Dias Gomes (que havia assinado outra, "A Ponte dos Suspiros", em 69, com o pseudônimo de Stela Calderón), até "Sinal de Alerta" (78/9), também dele, quando o núcleo das 22h foi extinto, inviabilizado pelo fiasco de público.
As novelas mais criativas, ou de melhor rendimento estético, são desse período (aliás o único em que a rigor faz algum sentido colocar o problema também em termos "artísticos", e não estatísticos ou francamente mercadológicos). Basta citar, além de "Bandeira 2" (71/2), "O Bem Amado (73), "O Espigão" (74) e "Saramandaia" (76), todas do próprio Dias Gomes, "O Bofe" (72/3) e "O Rebu" (74/75), de Bráulio Pedroso (afastado, aliás, da primeira delas antes de terminá-la por problemas com a audiência, mostrando como o realismo estatístico da Globo já atuava desde o início dos anos 70).
Ou, ainda, "Os Ossos do Barão" (73/4) e "O Grito" (75/6), ambas do dramaturgo Jorge Andrade. A última, uma das novelas mais lúgubres já realizadas pela Globo, tratava do cotidiano dos habitantes de um prédio residencial de luxo, construído na avenida São João, mas que se deteriorava com a construção do Minhocão. No centro, os gritos noturnos de um garoto com transtornos mentais que aterrorizava os demais moradores.
Novela que de certa forma diagnostica e antecipa o processo de encortiçamento do centro e a degradação de São Paulo, de uma violência inimaginável para o padrão dos caça-níqueis exibidos hoje pela Globo.
O Dias Gomes que interessa acaba nesse período heróico da telenovela, que aliás valeria a pena estudar melhor, inclusive à luz das limitações impostas pela ditadura, então no auge da selvageria.
O sucesso acachapante e extemporâneo de "Roque Santeiro" (exibida em 85/6, depois de ter sido censurada dez anos antes) é um fenômeno apenas mercadológico (e faz lembrar a frase do filósofo alemão Hegel: o momento mais alto que algo pode alcançar é aquele em que já começa seu declínio).
Pastiche facilitário e populista de "O Bem-Amado", se vale da mesma cidadezinha imaginária do interior, transformada em alegoria do Brasil, recurso obviamente datado e do qual só se tirava algum proveito num ambiente sufocado pela censura. Proveito ainda assim muito limitado, já que os conflitos reais do Brasil do "milagre" não cabiam mais na "equação alagoana" de Dias Gomes desde 73.
"Mandala" (87) é melhor nem comentar. Depois dela veio "Araponga" (90), história de um ex-agente do SNI vivido por Tarcísio Meira, uma espécie de Agente 86 que, aposentado junto com o regime militar, tomava mamadeira, promovia sessões de autoflagelo, colecionava calcinhas, tinha fixação pela figura materna, sofria de asma e idolatrava James Bond.
A Globo cuspia no mesmo prato em que havia comido, e Dias Gomes acreditava estar acertando as contas com a história quando, de fato, só reforçava o clichê inócuo do militar aparvalhado.
Um desastre, enfim, seguido de outro, a minissérie "Decadência" (95), em que o mesmo autor mais uma vez atuava como ideólogo da Globo, pondo em cena a história do pastor evangélico inescrupuloso e corrupto (alusão a Edir Macedo, então em plena cruzada contra o império de Roberto Marinho).
Depois da "Decadência", "O Fim do Mundo" (96), prova definitiva de que o subversivo e suas veleidades revolucionárias haviam sido triturados pela moenda do Jardim Botânico -usina de criar e de destruir talentos e ilusões.

Cometi dois erros na semana passada: 1) O dramaturgo Jorge Andrade, ao contrário de Dias Gomes, Gianfrancesco Guarnieri, Ariano Suassuna, Oduvaldo Vianna Filho e Augusto Boal, não era, como esses, militante de esquerda, como foi dito; 2) O CPC (Centro Popular de Cultura), e seu teatro com motivações pedagógico-revolucionárias, foi criado no final de 1961, no Rio de Janeiro, e não em 64, como ficou sugerido. Após o golpe militar, o CPC foi reprimido e se desarticulou.
Fica registrado meu pedido de desculpas aos leitores da coluna.


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