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CRÍTICA
Avancini e o dom de iludir
LUIZ CAVERSAN
NO MELHOR sentido que possa haver, o dom de
iludir é o predicado mais democrático da televisão. Por seu intermédio é possível viajar, fantasiar, amar, sonhar, sofrer, condenar ou absolver,
independentemente da classe social, da situação econômica ou da raça a que se pertença.
Basta uma telinha luminosa acoplada a uma antena e
um bom bando de artistas por trás dela que tudo de criativo será possível, para o desfrute de praticamente qualquer um.
O diretor Walter Avancini, que morreu
na quarta-feira, viveu um paradoxo profissional. Bem possivelmente por causa
de suas origens comunistas, ele era adepto e propagador do realismo na teledramaturgia. Mas foi responsável por momentos importantíssimos dessa mesma
teledramaturgia, em novelas, minisséries
e especiais nos quais o tal dom de iludir
foi levado a extremos, para deleite do telespectador cuja preocupação mais remota talvez fosse qualquer tipo de confrontação com a realidade social.
Mas Walter Avancini não precisaria ter
feito mais nada na vida para passar à
posteridade na história da televisão brasileira: lançou Sônia Braga ao estrelato,
capturando-a do (excelente) programa
infantil "Vila Sésamo", e transformou a
até então totalmente desconhecida Regina Duarte na namoradinha do Brasil.
Em tempo: é tido como o principal responsável pela implementação das minisséries na TV Globo, segmento em que a emissora consegue seus maiores
feitos na área da ficção (exemplo recente é a realização de
"Os Maias"). E participou do advento, junto com muitos
outros, de "Beto Rockfeller", novela que marcou a transição do gênero dramalhão mexicano (que hoje sobrevive
apenas no SBT) para as produções modernas.
Obviamente, em suas cinco décadas de labuta, fez muito mais, e talvez seja ocioso repetir aqui. Mesmo correndo
o risco da redundância, creio ser preciso relembrar que
ele foi responsável por "Morte e Vida Severina" (prêmio
Emmy Internacional em 1982), "Gabriela" (em que lançou Sônia Braga,1975), "A Deusa Vencida" (com Regina
Duarte, Excelsior, 1965), "Saramandaia" e "Selva de Pedra" (versão 1972).
Como (quase) todo bom artista, era tido como louco,
insuportável, por diversos colegas. Fez inimigos, teve discípulos e deixa sua marca no mais efêmero dos meios de
se fazer arte.
Duas semanas atrás, reportagem de Armando Antenore publicada na Folha revelava que o irreverente pessoal
do Casseta & Planeta não obteve permissão da Rede Globo para pôr no ar, em seu programa semanal, piadas alusivas ao ataque terrorista a Nova York e seus bélicos desdobramentos patrocinados por George W. Bush.
Segundo declarações do "casseta" Marcelo Madureira,
cenas chegaram a ser gravadas, mas a equipe de humoristas teria cedido aos argumentos da direção da emissora,
segundo os quais não era o momento de fazer piada, havia um clima de comoção etc.
Tendo os "cassetas" concordado ou não com o que dizia a Globo, o fato é que houve um veto: sem brincadeiras com o atentado.
Não foi a primeira vez que isso aconteceu, diga-se: há pouco tempo os rapazes foram impedidos de "tirar uma
casquinha" da dublê de cantora e atriz
Sandy. A pedido da moça, nada de
piadinhas.
Mas, voltando ao caso terrorismo/
EUA/piadas, é até compreensível que
a emissora não quisesse humor com a
desgraça alheia -embora eles, os
"cassetas", sejam especialistas nisso-
e acabasse surgindo um "consenso" a
respeito, como foi oficialmente dito.
Estaria de fato tudo na mais perfeita
ordem não fosse o fato de, na terça-feira seguinte, a da semana passada, o
programa ter, sim, abordado o assunto, ainda que de forma ligeira: duas
piadinhas com o Osama bin Laden.
Brincadeiras com o ímpeto belicista
de Bush ou com a xenofobia dos americanos? Não, nada,
embora o mundo (quase) todo esteja falando nisso.
Ainda que tangencialmente, e por intermédio de duas
piadas, houve a opção política de poupar os EUA.
Aliás, opção essa que ficou clara em vários programas
jornalísticos da emissora. Quem viu o "Fantástico" do último domingo sabe bem do que estou falando. O tema é
certamente delicado, e todo cuidado deve ser tomado.
Porque a opinião pública tem se mostrado atenta quanto
às generalizações antimuçulmanas (dê uma olhadinha na
seção de cartas deste caderno, à pág. 10).
Mas amanhã estréia "O Clone" é tudo ficará de acordo.
Ali só haverá árabes "do bem".
Ainda a respeito do humor na TV: em nome da saúde
mental dos telespectadores da emissora líder de audiência, três programas deveriam sumir do mapa. Pela ordem
de "pavorosidade": "Zorra Total", "Sai de Baixo" e a jurássica "Escolinha do Professor Raimundo". Os três reúnem os mesmos intragáveis ingredientes: falta de originalidade, mau gosto e apelação.
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