São Paulo, domingo, 31 de janeiro de 1999

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CRÍTICA

A dialética da malandragem

Divulgação
Matheus Nachtergaele e Selton Mello em cena de 'O Alto da Compadecida', minissérie da Globo


FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor interino de Opinião

O rumo que a TV tomou nos últimos tempos tem levado muitos analistas e telespectadores a postular uma sobreposição do popular e do popularesco, como se ambos fossem, além de sinônimos, o sintoma mais evidente do processo de degradação da programação.
Não é preciso ser conivente com a barbárie de certos programas de sucesso para perceber que a reação no mais das vezes moralista ao "baixo nível da TV" é ela mesma parte do problema. O preconceito de classe, uma tradição brasileira, vem disfarçado na exigência de uma higiene estética, de costumes e social, que trata de desqualificar ou pôr sob suspeição tudo o que é popular até que seja assimilado e pasteurizado pela cultura hegemônica, quando então pode ser consumido sem culpa. Não é novidade, no caso da TV, o papel que o chamado padrão Globo de qualidade desempenhou para difundir e cristalizar essa mentalidade.
Como quase tudo na vida, esse esquema geral, mesmo que válido, comporta exceções. E coube exatamente à Globo mostrar recentemente que a assimilação do popular ao popularesco não é uma fatalidade da natureza nem precisa pautar a TV brasileira.
A emissora teria mais de uma razão para reprisar essa obra-prima que é "O Auto da Compadecida", minissérie adaptada da peça quase homônima do dramaturgo Ariano Suassuna, no original apenas "Auto da Compadecida", sem o artigo inicial. Nem seria o caso de confrontar a criação de Guel Arraes com a minissérie "Chiquinha Gonzaga", atualmente em exibição, na qual predomina a moldura romântica, os clichês novelescos e um conservadorismo que afronta a biografia da homenageada.
A discrepância de qualidade entre as duas obras é gritante e não deixa de ser sintomático que a Globo tenha dedicado mais propaganda e expectativa em relação à segunda, em sintonia com sua vocação comportada.
Guel Arraes conseguiu preservar, com notável rendimento estético em se tratando de transpor uma obra feita para teatro na linguagem de outro veículo, toda a complexidade que a peça de Suassuna como que disfarça por trás de sua aparência simplória.
Sabe-se que a "Compadecida", concebida como um tipo de espetáculo circense, reúne numa engenharia verdadeiramente mágica uma temática enraizada na cultura popular e especificamente nordestina com a tradição do romance picaresco, de filiação espanhola. E Guel Arraes conseguiu traduzir para a TV essas duas vertentes.
O pícaro, como o define o crítico Antonio Candido em seu ensaio "A Dialética da Malandragem", é originalmente "ingênuo; a brutalidade da vida é que aos poucos o vai tornando esperto e sem escrúpulos, quase como defesa. (...) Ele é amável e risonho, espontâneo nos atos e estreitamente aderente aos fatos, que o vão rolando pela vida. (...) Um elemento importante da picaresca é essa espécie de aprendizado que amadurece e faz o protagonista recapitular a vida à luz de uma filosofia desencantada."
João Grilo, o pícaro da peça de Suassuna, "o amarelo mais amarelo e safado do mundo", nas palavras de seu companheiro de aventuras, Chicó, foi interpretado na montagem de Guel Arraes com uma competência espantosa e comovente por Mateus Nachtergaele, hoje provavelmente o maior ator brasileiro, a ponto de se destacar em meio a um elenco muito homogêneo e de primeiro time.
Não veremos tão brevemente uma obra reunindo tantas qualidades simultâneas na TV brasileira. Também por isso, valeria a pena ver de novo.


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