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CRÍTICA
O espetáculo dos pobres
FERNANDO DE BARROS E SILVA
"O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma
relação social entre pessoas, mediada por imagens"
Guy Debord, "A Sociedade do Espetáculo"
OS POBRES, que espetáculo! Tanto a solidariedade como o ódio aos miseráveis tornaram-se pirotécnicos, são induzidos e estão submetidos à
lógica espetacular da mídia. A televisão, máquina de teatralização da miséria, síntese involuntária de
uma "relação social entre pessoas mediada por imagens",
tornou-se o último elo deste Brasil, o
meu e o seu, com o outro, o deles. Mas
eles quem? Eles "quase todos", os menores da Febem, os supostos beneficiários
do "Criança Esperança", para citar dois
casos recentes e emblemáticos de ódio e
solidariedade espetaculares.
No primeiro caso, são menores, no segundo, crianças -a distinção terminológica, de resto irrefletida, sinalizando
dois tipos de comportamento social, ambos espetaculares, depositados na linguagem. Ideologia também é isso. Vale a
pena analisar mais de perto cada um desses dois "eventos" da miséria nacional.
Não se pode simplesmente ser "contra" uma iniciativa como o "Criança Esperança". As evidências e o senso comum mandam dizer que se trata de um
esforço solidário, de uma mobilização
social orientada pela TV visando atender
vidas que, mal-começadas, já são desprovidas de qualquer esperança. É inegável que crianças
são beneficiadas pela contribuição anônima e voluntária
de milhares de pessoas. Há no entanto algo de "natalino",
de expiação de culpa, de motivação lacrimejante com hora marcada nesse "Criança Esperança".
A sociedade como que se desincumbe por meio da mídia da miséria, com a qual tem uma relação virtual. É aliás
impossível discernir nesse show benevolente o que é ação
filantrópica e o que é lobby de si mesmo por parte de seus
protagonistas. Há uma pessoalização da caridade que só é
possível em sociedades extremamente injustas. Só uma
elite descompromissada com a miséria pode ser representada por figuras que, porta-vozes dos miseráveis, são
ao mesmo tempo um sintoma caricatural da distância
continental que a elite mantém dos seus "protegidos".
Uma sociedade é tanto mais justa quanto mais suas
"ações caridosas" são invisíveis e impessoalizadas, quanto mais a distribuição da riqueza estiver institucionalizada por mecanismos públicos e anônimos, que independem da boa vontade de A ou B ou da performance esporádica de um ídolo de massa qualquer para ser acionada.
O "Criança Esperança" tem um aspecto de ficcionalização da solidariedade -e o caráter espetacular que o anima serve, afinal, muito mais para encobrir do que para diminuir os abismos do país. A miragem produzida por esse tipo de evento revela sua outra face quando passamos
das "crianças" para os "menores", dos indefesos para os
facínoras, dos amiguinhos de ocasião para os inimigões
de sempre. É essa hoje a imagem predominante acerca
dos internos da Febem. A TV não é a única responsável
pelo fenômeno, que no entanto amplifica e do qual tira
proveito. O surto inaudito de conservadorismo que vai
tomando conta do país qualquer um
que tenha contato com a rua pode perceber. A demonização dos menores da
Febem agrega alguns tijolos a essa
obra em construção. É mais grave, porém, quando Lillian Witte Fibe, âncora de um telejornal de elite, faz eco às
opiniões do motorista de táxi. Barbárie também é isso.
A mesma frieza e indiferença diante
da miséria que se constata cotidianamente nas ruas (nos sinais de trânsito,
por exemplo) converte-se pela TV em
espetáculo, de solidariedade ou de
ódio, dependendo da solicitação em
cada caso. "As pessoas sentem raiva se
percebem que os meios de comunicação ficam penalizados de ver os menores sendo espancados. Uma importante parcela da população sente isso",
disse no ar Witte Fibe na semana que
passou. Uma frase como essa, quase
um pedido de licença ou de desculpa para continuar preservando um fiapo de vida civilizada no ar, não é obra solitária, mas sintoma e resultado de um longo processo coletivo de dessolidarização e embrutecimento dessa sociedade.
Não é preciso ser psicanalista para perceber que na repetição compulsiva das imagens de menores espancando
e linchando uns aos outros o que está sendo despertado
pela TV no espectador é seu desejo sádico, espectador
que se identifica com os algozes que ele ao mesmo tempo
detesta, porque se sente, como eles, vítima.
A contrapartida desse mecanismo perverso é a exploração da imagem do pai de um dos menores, que, posto pela Globo diante da TV, começa a chorar de desespero ao
identificar seu filho sendo espancado. Ódio e solidariedade se misturam num mesmo espetáculo.
Fazemos nossas doações esporádicas (no trânsito ou
pela TV), assistimos ao noticiário, tomados por medo e
revolta, e vamos dormir. Na consciência aliviada dos justos rumina aquele desejo de lincha, mata, esfola...
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