São Paulo, Domingo, 31 de Outubro de 1999
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CRÍTICA

O espetáculo dos pobres

FERNANDO DE BARROS E SILVA

"O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens"


Guy Debord, "A Sociedade do Espetáculo"

OS POBRES, que espetáculo! Tanto a solidariedade como o ódio aos miseráveis tornaram-se pirotécnicos, são induzidos e estão submetidos à lógica espetacular da mídia. A televisão, máquina de teatralização da miséria, síntese involuntária de uma "relação social entre pessoas mediada por imagens", tornou-se o último elo deste Brasil, o meu e o seu, com o outro, o deles. Mas eles quem? Eles "quase todos", os menores da Febem, os supostos beneficiários do "Criança Esperança", para citar dois casos recentes e emblemáticos de ódio e solidariedade espetaculares.
No primeiro caso, são menores, no segundo, crianças -a distinção terminológica, de resto irrefletida, sinalizando dois tipos de comportamento social, ambos espetaculares, depositados na linguagem. Ideologia também é isso. Vale a pena analisar mais de perto cada um desses dois "eventos" da miséria nacional.
Não se pode simplesmente ser "contra" uma iniciativa como o "Criança Esperança". As evidências e o senso comum mandam dizer que se trata de um esforço solidário, de uma mobilização social orientada pela TV visando atender vidas que, mal-começadas, já são desprovidas de qualquer esperança. É inegável que crianças são beneficiadas pela contribuição anônima e voluntária de milhares de pessoas. Há no entanto algo de "natalino", de expiação de culpa, de motivação lacrimejante com hora marcada nesse "Criança Esperança".
A sociedade como que se desincumbe por meio da mídia da miséria, com a qual tem uma relação virtual. É aliás impossível discernir nesse show benevolente o que é ação filantrópica e o que é lobby de si mesmo por parte de seus protagonistas. Há uma pessoalização da caridade que só é possível em sociedades extremamente injustas. Só uma elite descompromissada com a miséria pode ser representada por figuras que, porta-vozes dos miseráveis, são ao mesmo tempo um sintoma caricatural da distância continental que a elite mantém dos seus "protegidos".
Uma sociedade é tanto mais justa quanto mais suas "ações caridosas" são invisíveis e impessoalizadas, quanto mais a distribuição da riqueza estiver institucionalizada por mecanismos públicos e anônimos, que independem da boa vontade de A ou B ou da performance esporádica de um ídolo de massa qualquer para ser acionada.
O "Criança Esperança" tem um aspecto de ficcionalização da solidariedade -e o caráter espetacular que o anima serve, afinal, muito mais para encobrir do que para diminuir os abismos do país. A miragem produzida por esse tipo de evento revela sua outra face quando passamos das "crianças" para os "menores", dos indefesos para os facínoras, dos amiguinhos de ocasião para os inimigões de sempre. É essa hoje a imagem predominante acerca dos internos da Febem. A TV não é a única responsável pelo fenômeno, que no entanto amplifica e do qual tira proveito. O surto inaudito de conservadorismo que vai tomando conta do país qualquer um que tenha contato com a rua pode perceber. A demonização dos menores da Febem agrega alguns tijolos a essa obra em construção. É mais grave, porém, quando Lillian Witte Fibe, âncora de um telejornal de elite, faz eco às opiniões do motorista de táxi. Barbárie também é isso.
A mesma frieza e indiferença diante da miséria que se constata cotidianamente nas ruas (nos sinais de trânsito, por exemplo) converte-se pela TV em espetáculo, de solidariedade ou de ódio, dependendo da solicitação em cada caso. "As pessoas sentem raiva se percebem que os meios de comunicação ficam penalizados de ver os menores sendo espancados. Uma importante parcela da população sente isso", disse no ar Witte Fibe na semana que passou. Uma frase como essa, quase um pedido de licença ou de desculpa para continuar preservando um fiapo de vida civilizada no ar, não é obra solitária, mas sintoma e resultado de um longo processo coletivo de dessolidarização e embrutecimento dessa sociedade.
Não é preciso ser psicanalista para perceber que na repetição compulsiva das imagens de menores espancando e linchando uns aos outros o que está sendo despertado pela TV no espectador é seu desejo sádico, espectador que se identifica com os algozes que ele ao mesmo tempo detesta, porque se sente, como eles, vítima.
A contrapartida desse mecanismo perverso é a exploração da imagem do pai de um dos menores, que, posto pela Globo diante da TV, começa a chorar de desespero ao identificar seu filho sendo espancado. Ódio e solidariedade se misturam num mesmo espetáculo.
Fazemos nossas doações esporádicas (no trânsito ou pela TV), assistimos ao noticiário, tomados por medo e revolta, e vamos dormir. Na consciência aliviada dos justos rumina aquele desejo de lincha, mata, esfola...

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