São Paulo, domingo, 27 de outubro de 2002

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MULTAS DE TRÂNSITO

Sem que sejam procurados, estabelecimentos abordam por carta ou telefone motoristas autuados

Empresas de recurso invadem privacidade

Raphael Falavigna/Folha Imagem
O taxista Ailton Eustáquio Gomes, que faz curso de reciclagem para motoristas no Centro de Formação de Condutores, diz que teve frustrada sua tentativa de anular multas por uma empresa especializada nesse serviço


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As punições para quem infringe as leis de trânsito estão indo além da multa, apreensão da carteira e a matrícula em um curso de reciclagem. Além desse calvário, o infrator também corre o risco de ter a sua privacidade invadida.
São cada vez mais comuns as histórias de motoristas que recebem em casa a notificação de que foram multados e, logo depois, o telefone toca. Do outro lado da linha, um funcionário de uma empresa de recursos de multa promete fazer o possível para livrar os motoristas do pagamento.
Essa estratégia agressiva de "telemarketing ativo" demonstra que, ao ser multado ou ao ter a carteira de habilitação suspensa, não são apenas o proprietário do automóvel e o órgão de trânsito que sabem do ocorrido.
Por carta ou telefonema, as empresas se oferecem para recorrer das multas. As informações são obtidas por intermédio de listas de "mailing", que só são legais caso o consumidor tenha autorizado a divulgação de seus dados.
Segundo o conselheiro estadual da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) Romualdo Galvão Dias, a compra de cadastro pode ser considerada publicidade abusiva e método comercial desleal, condenados pelo Código de Defesa do Consumidor. "É possível pedir indenização, mas é mais fácil jogar a correspondência no lixo."

"Invadida"
A dona-de-casa D.L.M., 40, diz que sua carteira ainda não havia sido suspensa, mas ela recebeu um folheto oferecendo recurso. "Não dei meu endereço para ninguém e me senti invadida. Acho que foi o Detran [Departamento Estadual de Trânsito] que passou meu endereço", desabafa.
O assessor geral do diretor do órgão, Mário Gobbi Filho, 41, diz que investigações internas não apontam indícios de que funcionários do Detran divulguem informações dos motoristas.
Wanda Mirabile, 40, que teve sua habilitação suspensa e precisou fazer o curso de reciclagem, também foi abordada. "Recebi a carta do Detran avisando que teria meu documento suspenso e, em seguida, chegou a cartinha de [uma empresa de recurso]."
Mirabile afirma que ficou incomodada em saber que as empresas tinham acesso a seus dados e que sabiam da sua situação. "Acho que é invasão de privacidade. Eles sabem onde eu moro."
Já o taxista Ailton Eustáquio Gomes, 50, não deu importância à carta que recebeu porque, em outras ocasiões, desembolsou R$ 450 a uma firma que não "aniquilou" suas infrações. "Ao licenciar, paguei mais R$ 2.000."
Por outro lado, o bancário Gilberto Santana, 31, não se importou em receber uma correspondência. "Amassei e joguei fora."

Inquérito
A abordagem das empresas levou o Detran a abrir investigação -ainda não concluída- contra três empresas que teriam entrado em contato com motoristas: Connex, Rodrigues Alves e Procar. Seus computadores foram apreendidos e passam por perícia no Instituto de Criminalística.
"Crime é se houver algum funcionário do Detran envolvido", diz Rafael Rabinovici, delegado titular da DCT (Divisão de Crimes de Trânsito). "Por enquanto, investigamos possíveis ligações."
Segundo ele, há dois caminhos para que as empresas cheguem ao multado: ou os dados são fornecidos por um funcionário do departamento ou existe um sistema informatizado que os administra.
A principal "ponte" entre os multados e as empresas é o "Diário Oficial". Sempre que a carteira é suspensa, publica-se o nome do motorista. A partir dele, há um cruzamento com as listas de "mailing" -fornecidas tanto por empresas especializadas quanto por estabelecimentos comerciais.
Na Procar, foram confiscados um disquete, algumas páginas do "Diário Oficial" e dois CDs com endereços. "Para me comunicar com os clientes, uso uma mala-direta baseada no 'Diário Oficial'", conta o dono empresa, Carlos Pereira. Ele afirma ainda que esse material era seu instrumento de trabalho. (JOSÉ AUGUSTO AMORIM E LARA SCHULZE)


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