São Paulo, sábado, 13 de março de 2010

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DIA DO CONSUMIDOR

"Malas" que chiam sem razão

Eles esperneiam e usam operadores de call center como saco de pancadas quando não conseguem o que querem

DÉBORA MISMETTI
EDITORA-ASSISTENTE DO VITRINE

Gente irritada, que não ouve, xinga e humilha quem está do outro lado da linha faz parte do cotidiano do operador de call center Marcelo Rezende, 39. "Tem quem fale para eu ficar quieto porque paga meu salário." Nessas horas, ele aciona a tecla "mudo" do telefone, que impede o consumidor de escutar o que ele diz. "Aí também descarrego, digo "puxa, então está pagando muito pouco!'"
A falta de atenção dos consumidores a cláusulas de contratos firmados no momento da compra causa muitos dos atritos ao telefone, segundo Alexandra Periscinoto, presidente da empresa de call center SPCom. "O consumidor acha que tem direito acima do próprio direito. O trabalho da imprensa e de leis dizendo que nenhum call center presta também coloca uma gasolina a mais", afirma. Nesses casos de conflitos, Alexandra diz que os funcionários são treinados para entender que o xingamento não é com ele.
A coordenadora de clientes de uma empresa de telefonia, que pediu para não ser identificada, diz que as ligações problemáticas sempre começam com o consumidor falando alto, se recusando a dar dados e acusando a empresa de má conduta. Geralmente, essas pessoas já ligaram para a empresa antes e não tiveram sucesso.
Um caso comum é o de clientes que se esquecem de pagar a conta e têm a linha bloqueada. "Aí a pessoa paga e liga imediatamente para cá. Mas o atendente não vai conseguir religar a linha enquanto o banco não comunicar o pagamento à empresa", diz a coordenadora. O consumidor acaba pondo a culpa no operador e fica bravo quando ele não consegue resolver o problema de imediato.
Os operadores são treinados para manter a calma e ouvir o cliente quando ele está nervoso. "Fazemos simulações de ligações. Eles são instruídos a não interromper, a ouvir mais. Mas é difícil. Há situações em que o atendente acaba respondendo", diz a coordenadora.

Viciados em SAC
Se muitos consumidores detestam ligar para SACs, têm pesadelos com a música da espera e ojeriza aos discursos padronizados dos atendentes, alguns fazem disso um hábito, e ligam mesmo quando não há nenhum problema a resolver.
O aposentado Mario Polo, 64, por exemplo, tem 44 contatos registrados no SAC da Nestlé, nos últimos seis anos. Ele conta que liga para a empresa para tirar dúvidas sobre alimentação e pegar receitas. "Sou diabético e não tenho ninguém para me ajudar. Ligo para perguntar sobre quais alimentos posso comprar. Já perguntei também quando eles vão fazer leite condensado diet, porque adoro, mas não posso comer."
O aposentado já ligou também para fazer uma reclamação: comprou um sorvete que estava "sem gosto". "Logo vieram entregar outro na minha casa", diz ele.
A gerente de relacionamento da Nestlé, Marcia Abreu, diz que há muitos consumidores com uma ligação emocional com a marca, que ligam muitas vezes, pedindo receitas e informações. "Acompanhamos todo o histórico da pessoa na companhia. A gente conhece todas as demandas que ela tem aqui dentro. É uma informação estratégica sobre o consumidor, que se soma às pesquisas de mercado", diz a executiva.
E não é só para a Nestlé que Mario Polo telefona. Ele já ligou para a Coca-Cola, para reclamar de uma garrafa de água que não parava em pé, e também recebeu outra em substituição. "Liguei para uma marca de feijão, quando encontrei uma pedra no pacote, para um macarrão que veio com um probleminha, para a Sadia, quando veio uma linguiça com muita gordura, e para a Mellita, porque o café não estava bom."
Ele diz que é bem tratado, na maioria das vezes. "Um atendente já me falou para ir procurar o Procon, mas prefiro ligar para a empresa. O Procon só quer saber de indenização. Eu não, eu me preocupo com a qualidade do produto."

A cantada e o peru
O assédio moral sofrido pelos operadores de call center às vezes é substituído pelo sexual mesmo. O atendente Marcelo Rezende conta que já levou muitas cantadas no telefone. "A pessoa pede para eu adicionar no Orkut, no MSN, para anotar o telefone", diz. Mas, pelas regras do trabalho, ele não pode fazer isso. "Tem gente que é muito insistente. Aí eu falo que tenho o e-mail no cadastro, o telefone, mas não prometo ligar. Às vezes, tenho que fingir que não ouvi."
As situações cômicas também acontecem. Em novembro do ano passado, uma cliente ligou no call center onde ele trabalha pedindo para cancelar sua assinatura de internet, porque havia perdido o modem. "Insisti, perguntei se ela não queria procurar mais, se as crianças não tinham pegado. Até que ela falou: "Na verdade, acho que meu peru comeu o modem'". A moça tinha uma criação em casa, e não queria matar o bichinho para pegar de volta o aparelho. "Eu até sugeri para ela dar uma bebidinha para o peru e matá-lo, mas ela não quis." A solução foi encaminhar a moça a uma loja da operadora para comprar outro modem.


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