São Paulo, sábado, 21 de junho de 2008

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Opinião

ABRIDEIRA

Chef propõe viagem etílico-cultural pelas glórias 'daquela-que-matou-o-guarda'

"Aí, sim! Agora vem a pontinha da pirâmide social tupiniquim tomar cachaça. Acham exótico! E dizem que é boa 'quiném' uísque"

RODRIGO OLIVEIRA*
ESPECIAL PARA A FOLHA

Famosa e influente desde os primeiros séculos da colonização, a cachaça, hoje, tem seu lugar ao sol. Mas não desfruta do mesmo status de seus pares estrangeiros. Vodca na Rússia é assunto sério; uísque, na Escócia, orgulho nacional, e os "brandies" da França são, para eles, os melhores destilados do mundo. É assim que tem que ser. São o fruto da sua terra, são as bebidas que seus heróis tomaram.
Aqui na terrinha, quando a tal Independência chegou e a burguesia emergente foi buscar referências na Europa, a caninha, que era o espírito da brasilidade, tornou-se bebida de segunda, coisa de escravos.
Mas, sem guardar ressentimentos, a água-que-passarinho-não-bebe voltou à mesa da elite. No primeiro momento, à da elite intelectual. Artistas iniciaram, com a Semana de Arte Moderna, em 1922, um movimento pelo resgate da cultura brasileira em todos os seus aspectos. O samba desceu o morro e a caiana saiu do armário. Nossa tão querida engasga-gato, com sua embaixadora, a caipirinha, foi devagarzinho ganhando o mundo, junto da feijoada e do Carnaval.
Aí, sim! Agora vem a pontinha mais alta da pirâmide social tupiniquim tomar cachaça. Acham exótico! E dizem que é boa "quiném" uísque! Ouvir isso de um irlandês, vá lá.
Nenhuma outra bebida no mundo desfruta dessa diversidade de madeiras para envelhecimento. Se eles têm barris de carvalho, temos de bálsamo, umburana, jequitibá, garapeira, sassafrás, ipê... Nenhum outro lugar do mundo tem sua aguardente sendo produzida em regiões e condições tão diversas quanto a do Brasil.
Quer visitar o Piemonte, passear por Bourdeaux, legal.
Se puder, no caminho, passe em Parati (RJ), berço da cachaça de qualidade. Dê um pulinho até Januária (MG), pra ver como se faz a "marvada" às margens do rio São Francisco.
Já que está ali, suba um pouquinho mais e veja pinga orgânica sendo feita em Rio de Contas (BA), na Chapada Diamantina. Aproveite também e veja a maior coleção de cachaça em Lagoa do Carro (PE).
Chegue na sertaneja Guarabira (PB), e prove água-benta pra cabra-macho. Mais adiante, em Maranguape (CE), está o maior tonel do mundo: 374 mil litros da purinha!
No Sul, tome "uma" em Morretes (PR), comendo barreado. Seguindo viagem, passe em Luís Alves (SC). A pinga lá tem nomes difíceis, de famílias que vieram de longe e fazem cachaça há três gerações.
Quando o chão for se acabando, pare em Osório (RS) e veja que não são só os vinhos que fazem esse povo ficar com as bochechas rosadas.
Mais um convite: percorra páginas da história etílica. Visite Câmara Cascudo em "Prelúdio da Cachaça". Dê uma chegadinha em "Os Eufemismos da Cachaça", de Mário de Andrade, troque idéia com Gilberto Freyre sobre as influências da cultura da cana. Na volta, ouça Marcelo Câmara falar de sua paixão, ou de sua cachaça, como diria Drummond.
Tem mais gente falando disso. Falando bem, claro. Nos últimos anos, mais de uma dezena de bons títulos se propõem a ensinar o bê-a-bá daquela-que-matou-o-guarda.
Só não diga que tomou cachaça de banana ou cachaça da Noruega. Cachaça, só de cana-de-açúcar, e feita no Brasil. Nem que pinga boa é a de "cabeça": pinga boa vem do "coração" da destilação. Jamais diga que a nossa aguardente é conhecida por pinga porque pingava nas costas açoitadas dos pobres escravos. É pinga porque pinga mansinho na ponta do alambique. É aguardente, "acqua ardens", desde que Plínio, o Velho destilou resina de cedro numa chaleira há mais de dois mil anos, e não porque fazia arder as marcas da chibata. E em hipótese alguma diga de uma cachaça superior que "é boa "quiném" uísque!".
E como diz o verso popular: "A cachaça geribita/ A neta de cepa torta/Faz uns perder o tino/E outros errar a porta".
Beba com moderação. Mas se não tiver, beba com limão e mel, que cura a gripe.


RODRIGO OLIVEIRA, 28, é chef do restaurante e cachaçaria Mocotó

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