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04/09/2012 - 03h05

Bienal deve estar "entre mercado, feira de arte e museu", diz Pérez-Oramas

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FABIO CYPRIANO
CRÍTICO DA FOLHA
MARCOS GRINSPUM FERRAZ
COLABORADOR DA FOLHA

Para Luis Pérez-Oramas, o curador da 30ª Bienal de São Paulo, "o destino da Bienal era achar um lugar que deveria estar entre o mercado, a feira de arte e o museu". Por isso, o curador e seu time buscaram selecionar obras de artistas que nem participam do circuito comercial nem entraram no sistema de museus.

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Essa nova etnografia curatorial trouxe artistas como o educador francês Fernand Deligny ou o jornalista venezuelano Alfreto Cortina (1903-1988), que por décadas fotografou sua mulher em diferentes contextos, numa resultado que antecede as encenações de Cindy Sherman.

Por quase uma hora, Oramas falou à Folha sobre os conceitos que nortearam a organização da Bienal, numa noite quente da semana passada. Leia a seguir a íntegra da entrevista.

Folha -­ O que o público vai ver na Bienal "A Iminência das Poéticas"?
Luis Pérez-Oramas -­ Para a maioria das pessoas, "A Iminência das Poéticas" será descoberta através das obras da Bienal. O que queríamos desde o início era uma Bienal que se revelasse nas obras e não no título. E o título não é um tema, mas um motivo. Um motivo para produzir desvios na materialização da Bienal e para sugerir perguntas. "Iminência das poéticas" quer dizer que o problema da temporalidade é fundamental, assim como a ideia da contemporaneidade, que está ligada ao tempo. E a questão da temporalidade é que ela é experiencial, não algo que se pode saber antes de se ter experimentado. Por isso, para conhecer a Bienal é preciso experimentá-la.

Até certo ponto, o título é hermético. Se fosse totalmente claro, a chave estaria dada no título. Assim, "iminência" tem a ver com temporalidade e com experiência. Já "poéticas" é mais complicado, pois tendemos a simplificar. Mas elas não têm nada a ver com poesia. Poética é um instrumental que permite a qualquer pessoa, artista ou não, decidir como se expressar, no público ou no privado. Eu decidi que essa questão da poética é pertinente porque, na mudança da arte moderna para a arte contemporânea, uma das coisas que se desconstrói ou questiona é a ideia da linguagem artística como algo excepcional e do artista como uma figura fora da tribo, que tem uma linguagem própria. A arte contemporânea tende a reivindicar a linguagem artística como uma linguagem ordinária. Por isso as práticas contemporâneas são mais inclusivas, são comentários do mundo. Assim, na Bienal, as poéticas
são como os artistas se expressam. Por isso nós tomamos a decisão de apresentá-los em processo, não em uma obra individual, mas várias. Existem muitas bienais que abordam a política porque a arte contemporânea está virando discursiva. Mas o mundo continua tratando essa obra discursiva da mesma forma que um Picasso, o que é uma contradição política e estética.

Meu posicionamento como curador é que não se pode tratar a arte discursiva como se ela não fosse discursiva. Se o questionamento das linguagens modernas passa pela reinscrição das linguagens artísticas no sistema de linguagens ordinárias, essa é a razão para selecionarmos obras de não artistas como o Arthur Bispo do Rosário ou o Fernand Deligny.

Folha -­ Mas então não seria uma contradição utilizar como dispositivo expositivo tantas salas organizadas como o cubo branco?

*Pérez-Oramas -" ­ Eu sempre falo que não tenho nada contra ou a favor do cubo branco. Eu acho sim que o gesto maneirista e voluntário de não produzir cubo branco por não produzir cubo branco é um formalismo ideológico. A razão dos aparentes cubos brancos na Bienal vem de uma equação: nós queríamos produzir espaços abertos mas que, ao mesmo tempo, permitissem atender às constelações internas, processuais de cada artista, seguindo as exigências das obras selecionadas. Francamente, tivemos que simplificar os problemas e não criar novos.

O cubo branco é absolutamente consistente com uma obra que não pertence ao mundo, aí sim ele vira uma ideologia. Mas eu não acho que ele funcione aqui dessa forma, ninguém reivindica que as obras aqui não pertençam ao mundo. Simplesmente estamos trabalhando com um edifício que já é marcado pela ideologia modernista, que é pavilhão do Niemeyer. Não se pode brigar com o edifício, criando labirintos, pois isso seria infernal. Eu conversei muito com o Martin Corullon, responsável pela expografia, e o que eu sempre quis foi fazer uma expografia funcional, que possa responder às exigências das obras, que permita apresentar várias obras e que tenha aberturas para possibilitar relacionamentos.

Folha -­ Mas essas salas não acabam dificultando o diálogo entre as obras dos artistas?

Pérez-Oramas -­ Eu não acho e penso muito nisso. Se você impõe um diálogo, não se pode sair desse diálogo. Quando se coloca um artista ao lado do outro, não há outro remédio a não aceitar esse diálogo, que merece estar entre aspas três vezes. O que fizemos foi criar um distanciamento para quem quiser ver, mas quem não quiser, não precisa. Damos, assim, liberdade ao visitante. O princípio da Bienal não é impor diálogos, mas criar uma lógica de distâncias e proximidades. Eu entendo que a base da analogia é a dessemelhança, e a base da proximidade é o distanciamento.

Folha -­ E o Tunga diz que mesmo que haja paredes nos museus, na nossa cabeça não há paredes...

Pérez-Oramas -­ Por isso nós estamos publicando o tratado "Os Vínculos", de Giordano Bruno, que é um tratado arcaico, mas sumamente importante para a teoria estética a partir do renascimento. Segundo ele, tudo se relaciona com tudo, mas para fazer vínculos é preciso saber qual a oportunidade dessa vinculação, qual é a distância e a justificativa. O problema não está no vínculo.

Simon Plestenjak/Folhapress
O curador venezuelano Luis-Pérez Oramas no pavilhão da Bienal
O curador venezuelano Luis-Pérez Oramas no pavilhão da Bienal

Folha ­- Você podia falar agora da noção de constelação que permeia a Bienal.

Pérez-Oramas - Na realidade, a constelação tem duas razões. Com toda reserva de saber da arte visual, incluindo cinema, a metáfora da linguagem é relativa, porque ela tem um limite. Se a arte é linguagem, então a linguagem é constelar, ela funciona por um sistema de elementos que marcam diferenças entre eles. Essa é uma descoberta da linguística estrutural. Durante muitos séculos se pensava que a linguagem era um sistema histórico e variável, até que se percebeu que todas as linguagens do mundo funcionam sistematicamente por relações de diferenciação binaria ou ternária. Se as obras de arte produzem sentido por relações, o destino delas é ser constelar, isto é, quando alguém entra em contato com a obra, imediatamente pensa em outra. Ninguém olha para ela sem criar relações.

A outra razão para mim é a importância do pensamento de Aby Warburg, um pensamento que marca o fim da história da arte como um sistema genealogista, formalista, que entende a arte como fruto de indivíduos geniais que se sucedem na temporalidade e que nascem, crescem e morrem. Isso acabou e então nasce um novo pensamento artístico que é mais ou menos constelar. Esse assunto tem a ver com o fim da modernidade, e na Bienal há muitas obras sobre o cansaço da modernidade ou ainda sobre como ser modernos.

A história da arte clássica inventou a antiguidade, essa precedência, mas foi uma invenção contemporânea. E o Warburg se deu conta que a antiguidade como tal não existia, ou seja, ela existiu, mas era inacessível. Ela só se fazia acessível por conteúdos presentes. Então, é essa deformação que ele percebe da antiguidade no renascimento. Por isso é importante aplicar esse esquema na América Latina. O problema não é de refazer a modernidade aqui, mas perceber que quando você altera o local essa modernidade se transforma. Mas, sim, a questão constelar tem a ver com Warburg.

Folha -­ Ao optar então por esse pensamento, contra a ideia do artista genial, contra a ideia do autoral, apresentar muitos trabalhos de um mesmo artista faz com que essa Bienal evite o espetacular?

Pérez-Oramas -­ Eu diria que isso é um mal entendido. É a primeira vez na história que o portfolio completo do August Sander é exibido, incluindo a Alemanha. Para mim, isso é mais espetacular que mostrar o Richard Serra. Apresentamos ainda todos os desenhos do Fernand Deligny, o que, para mim, é mais espetacular que mostrar o Matthew Barney. Para mim.
Agora, eu não entendo a espetacularidade como monumentalidade. Essa Bienal não é monumental, mas é bem espetacular. A soma de trabalhos que são espetaculares é bem impressionante. Mas por que não é monumental? Porque a noção de monumento está totalmente dependente, ideologicamente falando, da ideia da grande obra-prima, da enormidade.
Eu acredito na pertinência do modo arquivista, do modo atlas, do modo catalográfico. Por isso Feldman ou Bispo podem ser os emblemas dessa Bienal. A espetacularidade se produz horizontalmente, repetitivamente, modularmente, serialmente, mas não no estilo Vittorio Emanuele.

Folha ­- Mas isso não pode gerar uma sensação de excesso?

Pérez-Oramas ­- Pode ser, mas por isso a expografia é limpa, simples, clara. Se além de trazer montes de arquivo, produzíssemos a confusão voluntária, aí estaríamos loucos.

Folha -­ Dos 111 artistas, 21 estão mortos --quase 20%. Para uma bienal de arte contemporânea, isso não é estranho?

Pérez-Oramas ­- Essa é uma questão interessante. Nós nunca tomamos a decisão de trazer artistas mortos. Mas eu verdadeiramente acredito que a contemporaneidade tem a ver com a densidade histórica. Acredito muito na definição que [o filósofo Giorgio] Agamben dá para a contemporaneidade, a contemporaneidade é uma "revenant", você projeta uma luz sobre o passado que faz que ele volte, hoje, diferentemente. Esses artistas que estão na Bienal e já morreram são artistas que, eu acho, produziram uma obra particularmente importante e pertinente hoje e não foram vistos, ou suficientemente vistos. Marcel Duchamp inventou o "ready-made" em 1912 e só porque os americanos os recuperaram, em 1958, quase 50 anos
mais tarde, eles tiveram vida futura. Como esse caso, há muitos outros na história da arte. O entendimento, a partir da produção contemporânea, da pertinência de uma produção passada imediata, é o que eu chamo de arqueologia imediata. É assim que o contemporâneo se constrói, não acho que seja apenas na chave da emergência absoluta. Ele se constrói também pela
projeção e dessa espécie de retroprojeção, já que se entende melhor a pertinência de certas obras do passado com o olhar do presente. É o caso de artistas como o Juan Luis Martínez, o Roberto Obregon, o Ian Hamilton Finlay. É o caso do Absalon, apesar de ele ter morrido jovem, mas mesmo assim sua obra não penetrou no continente americano e deveria, porque há
muitas relações com a arte brasileira.

Folha -­ As bienais passadas, voluntária ou involuntariamente, provocaram polêmicas, como o urubu na obra do Nuno Ramos, na 29ª Bienal, ou os pichadores na 28ª Bienal. A impressão é que essa Bienal quer evitar polêmicas, é verdade?

Pérez-Oramas -­ Acho que a provocação é uma atitude completamente "démodé", anacrônica, acho bastante ridículo provocar por provocar. Prefiro gastar meu tempo procurando entender as coisas, buscando relações inteligentes, mas vai ter polêmicas, eu apenas não vou adiantar. A ideia de curar uma exposição com a intensão provocativa é algo que não excluo. As vezes é preciso construir o dispositivo expositivo para provocar, mas eu não precisei fazer isso hoje. Quando eu comecei o processo, aqui, eu falei que o destino da Bienal era achar um lugar que deveria estar entre o mercado, a feira de arte, e o museu. Essa Bienal tem muitas obras que a lógica dos museus não viu e isso traz uma questão: você conhece a cena artística através do metabolismo da sociedade espetacular, que passa pelo sistema de museus, ou da etnografia curatorial, com o que tenho reservas, ou outro tipo de relacionamento. Nós buscamos um novo tipo de relacionamento.

Folha - Qual artista você considera que não foi visto pelos museus?

Pérez-Oramas -­ Artistas como Obregon, Finlay ou o Frédéric Bruly Bouabré, que para mim é um dos maiores do mundo, ainda não foram assimilados, mas acho que tem vários outros.

Folha -­ Mas há uma ausência de nomes famosos, e a Bienal é feita para um público mais amplo. Houve uma preocupação com isso?

Pérez-Oramas -­ Eu acho que o grande privilégio dessa Bienal é que ela tem um público assegurado, ela não precisa procurar nomes de estrelas para garantir público. Acho bobagem fazer uma bienal pensando que para garantir público é preciso grandes estrelas. É uma oportunidade e um privilégio fazer um trabalho inteligente, porque o público está aí.

Editoria de arte/folhapress

Folha ­- As Bienais de São Paulo costumam ser reações às edições anteriores. A 29ª estava cheia de artistas e era confusa, porque a anterior foi a Bienal do Vazio. Você pensou em dialogar com a mais recente?

Pérez-Oramas -­ Nós não pensamos em dialogar com a última, mas logicamente levamos em consideração a última. De fato, nós levamos em consideração todas as bienais produzidas depois da 24ª Bienal, em 1998, da qual tomei parte. Desde então eu vi todas elas e levamos todas em consideração. Por exemplo, com duas exceções, é a primeira vez que os brasileiros que estão nesta Bienal estão na Bienal. Ou, os dois que já participaram, participaram há muito tempo. O material educativo também foi pensando assim. Se dizemos que uma forma é a deformação de outra forma, então usamos as mesmas perguntas do educativo da Bienal passada e as transformamos. Acho importante ter esse diálogo, porque o material produzido pelo Agnaldo Farias e o Moacir dos Anjos foi muito bom, assim como foi bom o trabalho da Lisette Lagnado e do Ivo Mesquita, são pessoas que respeito intelectualmente e nós entramos nesse lugar marcado por uma coisa que já foi feita. Seria fútil não pensar nisso, mas não foi a questão central. Uma coisa que eu tinha claro era não querer fazer uma estrutura labiríntica, mimetizando a estrutura da cidade, mas uma montagem funcional.

Folha ­- Sua Bienal vai radicalizar algo que outras já ensaiaram que é a relação com a cidade, certo?

Pérez-Oramas -­ Existiam duas, entre várias opções. Uma, que eu acho demagógica, é dizer que a cidade precisa da Bienal. Na verdade, se não tiver Bienal, a cidade vai continuar, sobretudo uma cidade como essa. Esse é outro privilégio para trabalhar aqui. São Paulo não é Veneza, nem Kassel, mas uma cidade impensável. Nós precisamos reconhecer o tecido antropológico e urbano onde essa Bienal acontece. Por razões institucionais, históricas, muitas outras além de tudo isso, ela acontece nesse prédio, que é emblemático e está na cidade. Então nós precisamos reconhecer isso. Como trabalhar isso? Sabíamos que tínhamos muitas obras que se manifestam como acervo, como arquivo. Sabíamos que essa é uma bienal com aposta na contemporaneidade que passava por uma reflexão da arqueologia imediata e de história, então buscamos trabalhar com museus que abordam a história da cidade.

Queríamos realizar parcerias com instituições emblemáticas da cidade, como a Faap e o Instituto Tomie Ohtake e então decidimos quais projetos seriam pertinentes nelas. Como o Tomie Ohtake trabalha com design, educativo e arte, o Bruno Munari era lógico. Porque a Faap possui residências e é uma escola emblemática, os trabalhos do Xu Bing, do José Arnaud Bello e do Robert Smithson faziam sentido lá. Ainda há obras que funcionam nas derivas e em lugares emblemáticos. É o caso da Charlotte Posenenske, que trabalha com uma questão da Bienal que é a pós-abstração e como a forma é uma potencia que é ativa, e a Estação da Luz nos pareceu lógica. Outros artistas quiseram, desde o começo fazer trabalhos fora do pavilhão, como o Leandro Tartaglia. Finalmente, desde o início queríamos usar acervos de museu para colocar obras e o único que acabou dando certo é o Masp, onde a Jutta Koether fez um trabalho para dialogar com uma obra da coleção do Nicolas Poussin. É verdade que quando se faz a Bienal fora da pavilhão, ela pode ser menos visitada que no pavilhão, especialmente numa cidade como São Paulo, mas é um esforço que decidimos fazer.

Folha -­ É verdade que essa pode ser sua última curadoria e você vai se dedicar à poesia?

Pérez-Oramas ­- (Risos) Não é verdade. Bem que eu gostaria, mas tenho uma hipoteca para pagar. E já tenho duas exposições programadas no MoMA.

 

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